Cristal

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Todas as tardes ela gostava de passear pelas montanhas e pela praia. Raramente acompanhada de amigos, mas sempre ia. Era sagrado que aparecesse todos os dias. Eu diria que ela era uma exímia exploradora daquela região. Sempre que via algo novo, levava para casa, nem que fosse uns poucos grãos de areia do local. Eu particularmente não sabia como ela andava tanto e por tanto tempo.

— Essa menina só explora nosso espaço? Não tem mais o que fazer? — indaguei-me, certo dia, do alto de uma pedra enquanto a observava fazer o que sempre fazia.

Ela sempre carregava uma mochila velha e suja.

— Acho que essa mochila nunca viu água e sabão! — resmunguei quando ela depositou o objeto no chão e tirou um pequeno pote transparente de dentro. Coletou um punhado de areia e colocou-o de volta na mochila imunda.

Continuou a andar. Cheirou algumas plantas, fez algumas anotações em um bloco claramente feito de folhas afanadas de outras pessoas e colado pelas pontas para prendê-las.

— Não tem dinheiro para comprar um bloco de notas decente? — perguntei-me ainda a observando em seu trajeto.

Naquele dia parecia que ela tinha se esquecido de voltar para casa, pois o sol começou a se pôr e ela apenas continuou andando. E eu a seguindo, como sempre. Não a conhecia, não sabia de suas intenções.

Mentira, eu a conhecia sim. E muito bem. Vi-a nos últimos anos fazendo aquele processo todos os dias. Aos fins de semana, passava mais tempo por ali, mas não deixava de ir.

Era uma adolescente diferente das outras, pois não se interessada por meninos. Nem por meninas. Como eu sei disso? Ah, eu já disse, preciso ficar de olho para saber quem está entrando no nosso espaço. Preciso conhecer as intenções dela.

Segui Ale por mais um tempo, até que a vi entrando na minha caverna, a Caverna da Magia. Olhou em volta e procurou uma pedra para colocar sua mochila nojenta. Depois disso, tirou a própria roupa e colocou outra, mais leve, e se deitou, repousando a cabeça sobre a mochila, que devia cheirar mal.

— Pretende dormir por aqui? — indaguei sabendo que ela não me ouviria. Sequer sentiria a minha presença, pois eu a via, mas ela não conseguia me ver. Nem a mim e nem ao meu povo. Os habitantes daquela região do estado do Ceará.

Deixei todos tranquilos, quando ela ultrapassou os limites que nos separavam das pessoas não mágicas, assegurando que ficaria vigiando-a o tempo todo. E qualquer movimento fora do comum, eu agiria à nossa defesa.

O problema é que eu a acompanhava todo dia e ela não fazia nada que nos colocasse em risco. Pelo contrário, ela cuidava de algumas espécies de plantas, cobria alguns de seus rastros temendo caçadores ou trilheiros. E eu... bem, eu me apeguei a ela. Quando ela atrasava, eu ficava preocupada. Cheguei até a ir atrás dela quando atrasou. E me surpreendi quando a encontrei cuidando da mãe, que estava machucada.

Adentrei sua casa ao ver aquela mulher, magra e de olhar vermelho de chorar, e me comovi. Ajudei-a com suas dores físicas e fiz uma recapitulação de momentos para saber o motivo daquilo. O padrasto de Ale havia espancado sua mãe, covardemente, e saíra para se embriagar, deixando-a caída no chão para ser encontrada pela filha que chegava da escola naquele horário.

Pelas marcas no corpo da mulher, aquela não era a primeira vez e nem seria a última que ela seria agredida, pois ela se recusou a fazer uma denúncia na polícia contra o marido.

A mulher dormiu e Ale saiu do quarto levando os materiais de primeiros socorros que usara no rosto da mãe. Descartou tudo no lixo e se agachou, em lágrimas. Silenciosamente, a garota chorou por alguns minutos. Quando parou, suspirou profundamente e se dirigiu ao seu pequeno quarto.

O cômodo era repleto de coisas que roubava da minha floresta. Aquilo não me incomodava, ficava bonito ornando o quarto de tijolos expostos da angustiada exploradora da natureza.

Ale pegou sua mochila suja e deixou o quarto, passou pelo da mãe e a viu dormindo profundamente. Afastou-se da casa com vários pensamentos bons para substituir os ruins que povoaram sua cabeça momentos antes, quando chegou em casa e viu o estado da mãe.

A mente de Ale era um turbilhão de criatividade, com bons sentimentos de alegria e esperança de um futuro melhor. Mas isso só acontecia quando ela pegava sua mochila toda manchada de sujeira — que eu nem me atrevia a procurar saber de quê —, e rumava para as montanhas. A floresta a acolhia como uma mãe, que abraça um filho depois de um pesadelo.

Aquela era sua fuga. Aquele era seu mundo particular. Lá ela se esquecia da situação da mãe, espancada diariamente pelo marido sem sequer pensar nos sentimentos da filha, que precisava fugir para não enlouquecer dentro de casa.

Foi naquele dia que vi que ela, apesar de sonhadora e criativa, era uma humana sofredora.

Na caverna, ela colocou o braço sobre os olhos como se quisesse se defender de alguma claridade, mas ali dentro era um breu imenso. Aproximei-me e ouvi seu choro baixinho, um soluço quase inaudível. Senti sua tristeza e me sentei ao lado dela. Seus pensamentos voltaram a ser os de todos os momentos ruins de dentro de casa.

Ao tentar saber o que havia acontecido, vi sua mãe gritar com ela, pois a garota insinuou que registraria uma queixa na polícia se o padrasto encostasse outro dedo nela. A discussão fora feia e por muito pouco Ale não apanhou também.

A jovem entrou no quarto, muniu-se da mochila, companheira de sempre, colocou algumas roupas, comida, água e deixou a casa. Aquilo me cortou o coração, pois quando tentamos ajudar quem amamos e somos vistos como os errados da história, é como uma punhalada no coração e da pior maneira, já que não temos a opção de morrer.

Velei o sono de Ale por uns minutos, depois me recolhi para minha casa. Achando que ela dormiria a noite inteira, eu a deixei sozinha. Ficaria apenas ali, não haveria problema nenhum.

No dia seguinte, aos primeiros raios de sol, já fui à caverna e Ale não estava mais lá. Pela energia deixada por ela, havia saído por volta das duas da manhã.

Achei aquilo muito esquisito, pois ninguém ousaria andar de madrugada por aquela floresta e muito menos pelas ruas para o caso de ela ter voltado para casa.

Para tirar a dúvida, fiz uma recapitulação de momentos até a hora em que ela deixou a caverna e quase enfartei, pois a vi ouvir um barulho e ficar atenta.

Pegou sua mochila e tirou uma lanterna de dentro. Apontou o facho de luz na direção do barulho e não viu nada. Achando se tratar de algum animal feroz, ela seguiu pela primeira fresta que encontrou naquele breu e adentrou mais a caverna. Passou por lugares que só a coube por ser muito magra. Escorregou e desceu, arranhando-se toda nas pedras que se encontravam unidas, porém lisas por umidade e alguns musgos, e caiu em um pequeno lago no fundo da caverna.

— Agora lascou! Vou morrer aqui dentro mesmo. Como vou conseguir sair daqui? — indagou-se, levantando-se.

Sua mochila encharcou toda e temi que se desfizesse, pois já que nunca viu água e sabão, poderia estranhar aquele contato e se desintegrar como algodão doce em contato com saliva.

Ale andou cautelosamente por ali. Acendeu a lanterna e iluminou as paredes brilhantes da Caverna da Magia. Meu coração começou a pular e precisei segurá-lo para não sair do peito quando Ale se deslumbrou com os cristais mágicos que nasciam nas paredes da caverna.

No auge do meu desespero, tentei impedi-la de tocar neles, pois as consequências daquele ato poderiam ser catastróficas. Ela arrancou um cristal colorido que brilhava à luz da lanterna dela. Era um dos mais valiosos e raros.

Ale - Fada Por Acaso - ES 2020Onde histórias criam vida. Descubra agora