Vida de Pano

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Vida de Pano

A agulha me picava. Furo após furo a forma idealizada se revelava diante da deusa criadora. Deitado sobre a máquina, eu vislumbrava seu Olimpo. Um ventilador de teto com uma lâmpada presa a ele se balançava no ar em um movimento contínuo e ameaçava se espatifar no chão a qualquer momento, como num prenúncio de uma morte esperada.

Atrás dela eu via uma janela descortinada. A luz penetrava o ambiente em difusos fios rebuscados pelas milhares partículas de poeiras que sobrevoavam o pequeno quarto. Peles. Pêlos. Panos.

Do lado direito, uma cama de casal. Velha. Madeira de pinus, clara, porém encardida pelo tempo. Simples, pequena, sob uma colcha de cetim que já desfiava em suas contagens dos anos...

Havia no quarto também um pequeno caixote de onde saía sons e imagens, bem colocado exatamente de frente para a máquina em cima de uma cômoda. "Para não ficar tão sozinha..." dizia ela quando ele reclamava de uma tal conta de luz.

"Vai ficar cara!"

"Sou eu quem paga pela energia!"

Ela retrucava de maneira enérgica com certo tom de orgulho prepotente na voz.

"Mas o dinheiro" ; ele revidava, " é nosso! É tudo sempre nosso. Nós estamos juntos na vida, então é tudo nosso!"

Enquanto ele protestava com veemência, ela respirava fundo. Parecia buscar dentro dela um resquício de quem ela fora antes dele. Esse e tantos outros diálogos, ao que me pareceu, se faziam recorrentes entre os dois.

Quando ela me tocou pela primeira vez... Eu era só tecido. Senti em sua pele o pulsar de uma vida abafada. Aquelas mãos calejadas, alongada por dedos finos e ressecados com unhas roídas, alguns até feridos, escondiam sua boca quando ela sorria e raspavam do rosto as inúmeras lágrimas que presenciei no pouco tempo que estive com ela. Então descobri que deusas também choram.

Qual o sentido da vida? Dessa vida? Ela murmurava enquanto me cortava com a tesoura. Mãos firmes, porém úmidas do líquido salgado que insistia lhe invadir a face. E nesse manejar da tesoura, eu me via em pedaços, sem saber o que seria da minha própria existência dalí, para frente. Vida própria? Quem a tem?

A deusa me tinha sob controle. Ela terminou-me. Segurou-me com as pontas dos dedos, os braços estendidos à altura dos olhos. De lá, pude ver um chão de madeira. Tacos. Muitos deles já desobedientes, não se encaixavam mais ao chão que lhes era morada.

Enquanto eu vislumbrava o chão, ela me examinava minuciosamente. Franzia a testa. Mergulhava em linhas e pontos. Aqueles olhos cor de mel, normalmente escondidos nas profundidades dos anéis marrom escuros ao redor deles, se iluminavam agora e refletiam o seu gozo, fruto do prazer pela perfeição.

Seu orgulho ornamentado com a arrogância dos deuses criadores revelavam a sua verdadeira face que me levavam de um estado de adoração a um temor de forma constante e contínua. Fitou-me por um último momento. Fez um movimento rápido com a cabeça, para cima, empinou o nariz, enquanto um sorriso cínico de canto de boca se fazia notável, mesmo que tenha durado frações de um segundo.

Então, como que quase com desprezo, jogara-me em uma caixa. Até então eu não havia notado sua existência, mas ela estava alí, ao lado da máquina de costura à minha espera, apesar de estar já abarrotada de peças provavelmente iguais ou até mesmo idênticas a mim. Contudo, eu ainda não sabia que forma tinha.

No susto, não reparei o que havia lá dentro enquanto caía, e após cair... Bem, caí em cima de outras peças, portanto, não conseguia vê-las. E por não poder ver as minhas iguais, eu ainda não sabia quem eu era.

Ausência! A deusa deixou o quarto. Escuridão. Silêncio. Tormento numa alma de pano. Sempre me atormentaram, desde que era apenas algodão. Todavia, após apreciar o poder da presença divina, o silêncio encharcava meu ser inerte, enquanto o escuro espalhava suas garras em minhas fibras.

Ela voltaria?

Foi nesse momento que eu percebi o silêncio sendo interrompido por alguns sons abafados e chiados.

Ouvi vozes.

A princípio parecia uma conversa comum, mas ela foi ligeira em afastar o sistematicamente o silêncio que me torturava.

Vozes exaltadas. Cada vez mais rápidas, retrucantes e impenetrantes... Barulhos de objetos que caíam. Havia correria. Hora as vozes pareciam mais perto, hora mais distantes.

Eu tentava, mas não conseguia distinguir o que era dito entre eles. Num ápice, algo de vidro de se espatifou contra a parede. Um grito agudo transpassou os tijolos. Se eu tivesse espinha dorsal, sentiria nela frio. Se tivesse olhos, estariam arregalados. Mas apenas senti medo e talvez alguma linha tenha se rompido na minha costura, tamanha era minha angústia. Silêncio, novamente. Desta vez mais ameaçador do que antes. E mais duradouro também.

Ela voltaria?

............

Eu não sei bem o que ocorreu depois. Devo ter dormido. Era só escuridão, por muito tempo. Acordei em um outro lugar. Estava com outra pessoa. Essa me olhava com um olhar curioso. Não sei se era em relação a mim ou talvez ela sempre olhasse assim. Não parecia estar extremamente feliz em me ver. De repente, ela me pôs a boca e vestiu-me. Olhou-se no espelho e pela primeira vez pude visualizar minha forma em sua face: cobria sua boca, queixo, nariz... "Eu acho que o mínimo que as pessoas deveriam fazer, era pôr a máscara! Tem gente que sai para fazer corrida na praia sem máscara, é muito absurdo!". "Sim, eu li esses dias, que o uso da máscara ainda diminui as chances de desenvolverem a doença de forma grave."

Havia um vírus. E eu havia sido feita por uma deusa para ajudar as pessoas a viverem e não adoecerem ou pelo menos não tanto. Confesso que num primeiro momento estava decepcionado por não ser um vestido elegante de festa, como tantos que já vira na minha curta existência. Ou uma blusa, uma calça... Mas quando entendi minha importância no mundo, aprendi a me orgulhar de mim mesma. Agora eu não era mais o tecido. Eu era a máscara. E não era a única máscara da moça, mas isso não me incomodava. As outras eram também feitas pelas mesmas mãos criadoras que me fizeram.

Dela, soube mais tarde seu nome. E seu destino também.

"É estranho usar essas máscaras da Luana. Não dá para acreditar!"

"Acho que ela quis se vingar dele. Fez da pior forma possível!"

"Não acho. Ele a torturava, a matava aos pouquinhos. Acho que foi a maneira dela dizer para ele, que ela tinha o controle. Ela mandava na vida dela. E na morte..."

"Acha que ele entendeu o recado?"

"Duvido! Ele vendeu as máquinas dela para ajudar a pagar as despesas do enterro... Dizem que ele ainda reclamava que até morta ela causava prejuízos..."

"Não entendo o porquê dela ficar com ele. Ela não dependia dele!"

"E você acha que ele a deixaria em paz? Nunca!"

"Mas existe justiça, lei. Ela podia ter procurado ajuda!"

Depois de um silêncio, que apesar de curto, foi muito incômodo, a boca por detrás do meu tecido, então disse:

"A mesma tesoura que fez essa máscara...".

Senti o gosto salgado do líquido que sai dos olhos mais uma vez encharcar minhas fibras.

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E aí, adivinharam no que o pano se tornaria? Cono vocês se sentiram durante a leitura? Lembrem de deixar o voto de vocês 🤩

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