Da varanda, eu te vejo

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Da varanda de sua casa, Allana conseguia ver o limite entre o que era a sua vida e o que era parte do seu mundo particular. Bom, talvez ela não fosse a mais criativa das pessoas no mundo – ela admirava artistas num geral porque eles sabiam como despertar todos os sentimentos do mundo de uma vez só –, porém ela gostava de acreditar que havia um mundo em que ela fosse o centro de tudo.

Não, não era puro egoísmo. Se ela pudesse viver em um local onde só ela existisse, este seria seu mundo e ela faria o que bem entendesse com ele. Sem inúmeras listas de exercícios do colégio e preocupações com o seu futuro. Sem ter que ir ao supermercado e cuidar da horta de sua vó. Sem ter que espiar o garoto que ela gostava em total segredo apenas para que sua existência continuasse despercebida.

É, ela queria muito um universo para si.

Mas, de sua varanda, ela sabia que não poderia ir muito além das ruas do bairro onde crescera e das estradas que sempre levavam aos mesmos locais. Então o que lhe restava era se sentar, observar o sol se pôr no horizonte e imaginar que, em seus sonhos, ela seria a rainha de seu próprio mundo.

O que poderia dar errado se ela deitasse e esperasse pelas estrelas? Sua mãe gritaria do andar debaixo que ela precisava tomar banho, ajudar com o jantar e colocar o seriado que a avó queria ver. E depois ela teria que correr para se esconder debaixo do edredom com as bochechas coradas ao lembrar de como o seu garoto ainda passava por ali, mas nunca a via.

Fazia semanas que ela não o via por aí, com os cachos caramelo e os olhos verdes como as folhas da horta, infelizmente. Ela se sentava no mesmo lugar da varanda, mas ele desaparecia assim que ela piscava os olhos. De seu trono entre os limites dos mundos, ela enxergava a clínica de fisioterapia de onde ele saía todo final de tarde. De segunda a sexta, sem faltas, ele estava lá para se recuperar da lesão em seu pulso.

No dia em que ele entrou na sala de aula com o pulso imobilizado, Allana sabia que algo estava errado. Como um garoto que tocava na banda mais popular da cidade poderia se deixar machucar assim? O processo de recuperação seria difícil e longo. Ela tinha certeza disso porque tinha torcido o pé descendo as escadas da colégio alguns dias antes.

Tudo bem que ela não era a pessoa mais equilibrada do mundo, mas se os garotos mais infantis da turma não tivessem começado uma brincadeirinha estúpida de empurrarem uns aos outros, ela não teria sido vítima de um garoto mais estabanado que esbarrara nela em um péssimo momento. Como resposta para a reação do encontro dos corpos, ela pisou em falso e torceu o pé. Seu corpo só não foi ao chão com tudo porque ela teve o reflexo de segurar o corrimão.

Seu grito de dor rasgou as risadas e trouxe uma coordenadora para a cena em um piscar de olhos. Os garotos de dezesseis anos sumiram e ela permaneceu sentada nos últimos degraus chorando de dor. Nem todo o gelo no mundo poderia amenizar o susto e a dor que rasgava seu corpo.

O pior passara quando ela ouvira do médico de plantão no hospital que ela não tinha quebrado nada. Mas ela teria uma luxação enorme, tomaria alguns remédios para ajudar com o incômodo, aplicaria gelo durante todo o dia no local e faria dezenas de sessões de fisioterapia. Se seu dia pudesse ficar pior, ela teria que andar de um lado para o outro com muletas e uma bota ortopédica, dificultando a simples tarefa de ir e vir despercebida por sua vida.

Ela aceitou o destino de comparecer, durante as tardes, três vezes na semana, na clínica de fisioterapia perto de sua casa. Não era tão chato assim quanto parecia, mas ela se sentia sozinha.

Bom, até o garoto aparecer em uma tarde com seu pulso ainda imobilizado. Como toda fratura, lesão ou luxação, ele precisaria de várias sessões de fisioterapia se quisesse tocar violão novamente. Allana o espiava secretamente quando eles estavam próximos, mas ela fingia indiferença com a presença dele. E ele nem sabia que ela era, então não havia nenhuma preocupação em pronunciar algo além de "boa tarde" junto com os outros pacientes quando ele entrava na sala.

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