A brisa de verão dava movimento às folhas das árvores, espalhando pelo parque da cidade o cheiro inconfundível dos eucaliptos plantados em toda sua extensão. O calor do verão, somado ao feriado prolongado tornou o parque o lugar ideal para as famílias passarem suas tardes. As crianças corriam de um lado para o outro, com suas risadas, gritos e brincadeiras; rolavam na grama, corriam com pequenos bonecos nas mãos e escondiam-se atrás de árvores. Os adultos estavam sentados nas retangulares mesas de madeira, tomando refrescos, conversando sobre o clima, a economia e política.
À sombra de uma pequena árvore, na periferia do parque, Gabriel, sentado em uma toalha quadriculada azul e branca, observava os acontecimentos do lugar. Tudo que seus castanhos olhos alcançavam tornavam-se alvo de sua mente. Ele observa as crianças que corriam entre as árvores, com suas sandálias e sapatos de borracha, imaginando o que se passava na cabeça delas, e sobre o que elas estavam brincando. Talvez estivessem brincando de agentes secretos, com suas ferramentas de espionagem. Talvez estivessem apenas correndo. Ele aperta suas mãos contra a grama, arrependido de nunca ter feito amigos em sua sala de aula. Sempre sonhava em ter um melhor amigo, alguém para passar tardes inteiras brincando sem cansar. Ao soltar a grama, ele diz para si mesmo que ao fim do feriado, ele fará de tudo para fazer amigos. Ele imagina todas as brincadeiras que eles fariam, todos os jogos que jogariam. Gabriel desvia seu olhar para outra direção quando vê uma família que se sentava em um pequeno quiosque, eles estavam retirando alguns lanches de uma sacola laranja. Uma garrafa verde com suco de uva, alguns sanduíches embrulhados em papel alumínio, um salgadinho de embalagem azul, algumas cervejas em pequenas garrafas verdes claras, algumas torradas com patês, frutas frescas e suculentas. Com tudo isso sobre a mesa, a família sentou-se e, entre risadas e carinhos, começou a comer. Gabriel observava a refeição da família, a calma com a qual eles desfrutavam de tudo aquilo que lhes estava servido, como um banquete como aquele era comum para eles. Há um cachorro grande, com pelagem dourada, sentado ao lado da mesa, aguardando ansiosamente para que algum membro da família lhe atire algo para comer. Gabriel passa a imaginar se um dia teria um cachorro tão majestoso como aquele, um companheiro para todos os momentos, para que pudesse ir a todos os parques desse mundo com um amigo, que nunca lhe abandonaria. Imaginava-se em um campo aberto, repleto de flores e árvores, correndo junto de seu fiel companheiro. Pensa sobre o quão suave deve ser o pelo do animal, imagina passando a mão sobre o dourado corpo dele, sua mão afundando sobre os pelos macios. Ele passa a encarar a toalha quando percebe que sempre guardou para si o desejo de ter um cachorro. Nunca disse, por medo do que falariam, em voz alta que queria um fiel escudeiro. Mas ele diz que irá, a partir deste dia, colocar todos os seus desejos para fora. Expressará sua vontade, e fará de tudo para realizá-las. Esse pensamento faz com que um tímido sorriso apareça na boca de Gabriel. O grito de uma criança tira a mente dele do cachorro e leva-a para uma segunda família que chegava carregando um carrinho com um pequenino bebê dentro. O pai, empurrando cuidadosamente a criança, cantarolando para ela, enquanto a mãe carregava uma bolsa branca com detalhes rosa. O nenê, tão bem embrulhado em panos de seda, com toda a atenção e cuidado dos pais. Gabriel observa a família passear pelos caminhos demarcados do parque com o carrinho, imaginando se um dia teria uma família como aquela. Pensa se um dia casaria, teria um filho e carregaria-o em um carrinho como aquele. Imagina seu terno de noivo, um smooking cinza, um colete preto e uma gravata branca. Sua noiva em um vestido majestoso, com um longo véu e um enorme buque de rosas, caminhando lentamente em sua direção. Eles seriam felizes, como príncipes e princesas dos contos de fadas, viajando pelo mundo, vivendo aventuras. Mas ele é acometido pela triste lembrança de que não possui amigos, e consequentemente, ninguém com quem possa se casar. Ele fecha os olhos e repete que fará de tudo para ter o casamento dos seus sonhos, com a princesa de seus sonhos e para que eles possam viver todas as aventuras imagináveis. Ele volta a observar o casal carregar o carrinho ao longo do parque, até que eles caminham o suficiente para que Gabriel não pudesse mais vê-los.
Um carro que começa a estacionar na calçada próxima de onde Gabriel estava atrai sua atenção. Era um carro esporte vermelho, com linhas que atravessavam sua lateral. Gabriel fica com os olhos vidrados sobre o veículo, e com os ouvidos atentos aos sons que seu motor emite. O motorista desce do carro, vestindo tênis e camiseta de corrida, junto de uma garrafa de água em mãos. Gabriel não consegue evitar a curiosidade de dar uma pequena espiada no interior do carro. Então levanta-se e caminha timidamente em direção a ele. Ele coloca as mãos ao redor dos olhos, apoiadas no vidro, para que pudesse observar cada detalhe do interior da máquina. Seus olhos observam com curiosidade os bancos de couro, o volante preto com linhas vermelhas em seu centro; o console, com uma tela grande e cercada de botões. Ele imagina qual seria a função de cada um deles. Qual acionaria o turbo, qual faria o carro fazer curvas e manobras. Ele fica longos minutos imaginando como seria dirigir um carro como aquele, como seria apostar uma corrida com tantos botões à sua disposição. Reflete se um dia teria um carro como esse, para viver todas as aventuras que ansiava em viver.
Uma batida de carros na rua traz Gabriel de volta para a realidade. Dois homens descem de seus carros, gritando um com o outro. Gabriel caminha ao redor do carro vermelho para observar o ocorrido. Suas mãos ficam apoiadas sobre o carro de seus sonhos, enquanto ele espia os homens discutindo.
Há gritos e ofensas de ambos os lados. Um deles empurra o outro, que caminha em direção a seu carro. Ele volta com algo nas mãos. Gabriel sai de trás do carro vermelho para ver o que estava nas mãos do homem. A discussão fica mais alta. O homem com objeto estica o braço em direção ao outro. Um estrondo alto atravessa o parque. Pássaros voam para longe dos eucaliptos. As famílias correm em todas as direções. Pais correm em direção aos seus filhos, tomando-os pelos braços. Gabriel leva a mão aonde sente dor. Antes que pudesse olhar para ela, ele cai sobre o calor da sarjeta. Ele não consegue respirar. Não consegue se mexer. Ele olha para suas mãos. Vermelhas como o carro.
Seus sonhos, seus planos, escorrem entre seus dedos, junto do sangue que mancha a calçada. A emergência fora chamada, mas não chegou a tempo. O homem que disparou entra em seu carro, mesmo danificado do acidente, e foge para longe. É sobre o calor do sol, sobre a brisa do verão e sobre a tarde do feriado que Gabriel falece sobre a calçada do parque, sem nunca ter realizado nada daquilo que sonhava. Nunca fez os amigos que sonhou que faria. Nunca passou tardes e mais tardes brincando com eles. Nunca pode nem esforçar-se para fazer amigos.Nunca teve o cachorro dourado que lhe faria companhia. Nunca pode compartilhar suas aventuras e brincadeiras com seu fiel escudeiro. Nunca pode gritar para o mundo seu desejo de ter um cachorro.Nunca casou-se. Nunca foi feliz como um príncipe. Nunca nem ao menos teve uma desilusão amorosa. Nunca teve um carro de corridas.
Gabriel era apenas um observador. Era apenas um sonhador. Gabriel era apenas uma criança.Para todas as almas que não puderam dizer últimas palavras, que não puderam abraçar uma última vez, que não puderam amar uma última vez, que não puderam celebrar uma última vez, que não puderam alcançar seus sonhos. Para todas aquelas vidas vítimas de injustiças e violência, todos os que tinham conquistas e sonhos a serem alcançados, mas foram-se cedo demais.
Aos vivos, ainda há tempo. Faça por você. Faça pelos que já se foram.