Capítulo único

40 4 4
                                    

Onde eu durmo é muito escuro. Disse errado talvez, onde eu vivo é escuro. É um closet feminino feito sob medida, metade da minha dona, metade da mãe dela. É apertado mas é aconchegante e muito organizado. Muitas roupas vivem comigo lá dentro, mas eu fico na repartição das calças, então não vejo todo mundo. Sobre mim: eu sou um jeans Skinny, e, modéstia à parte, sou a peça favorita da minha dona, isso por que ela aprendeu a gostar de coisas coladas no corpo. A minha vizinha por outro lado, pobre coitada, deixa a bunda da minha dona parecendo que ela está usando uma fralda, não é à toa que a coitadinha só é usada quando eu estou para lavar. Mas eu não falo isso pra me sobressair às outras. O que eu vou contar, na verdade, é algo muito importante sobre a natureza das calças, algo que me torna tão comum como qualquer outra.

Primeiro ponto sobre nós calças e que talvez passe despercebido ao indivíduo que veste uma peça de roupa: nós sentimos tudo que quem nos usa sente. Conseguimos captar até os pensamentos. Eu ouço a minha dona a cada instante, e não a descrevo aqui em detalhes porque para o que eu preciso contar, o todo é de mais. Mais vale um aspecto sobre ela, que apesar da aparência de senhora de si, fruto de dezesseis anos tendo a mãe que tinha, possuía uma mágoa consigo mesma que tentava esconder de todos.

E eu era a fiel desse segredo. O único que eu pude conhecer em toda a minha existência já que nunca fui calça de outra pessoa antes. Uma vez quando fui posta para lavar e passei uma semana no cesto de roupa suja, pude conversar com uma calça jeans Pantalona, calça da mãe da minha dona, a única pessoa de quem nem mesmo eu seria capaz de esconder o segredo. E ela, a calça, me assegurou que isso era uma questão que incomodava muito a mãe, porque não era propriamente algo particular daquela que eu vestia, mas uma coisa intrínseca à performance feminina nesse mundo. E que não por acaso, vinha sendo muito mal executado pela minha dona e gerava muitas discussões entre ela e a mãe, como a que eu e a calça Pantalona pudemos presenciar enquanto estávamos no cesto.

Invadindo o banho da filha sem bater, a mãe aparece e aproveita a condição de corpo nu dela para lhe sugerir tirar aquilo que tanto a incomoda, o que a minha dona qualifica como a transmissão do legado de auto violação do próprio corpo. Não é que gostasse daquilo que escondia, se assim fosse não precisaria dos meus serviços, mas odiava todo o processo de se livrar daquilo. Odiava aquela intromissão no seu banho, e ainda mais aquela lâmina amarela e rabugenta que parecia sorrir para ela em todos os banhos e que agora se encontrava nas mãos de sua mãe.

"Você não acha que está na hora de tirar?". Era a pergunta dela. Ao que minha dona retorquiu:

"Não. Não tô com vontade."

A resposta veio num sorriso penoso da mãe que parecia dizer "pobre criatura, ninguém lhe disse que não é questão de querer". E não se dando por vencida ela reforça o pedido duas, três, quatro vezes, que resultam em mais recusas por parte da filha, até que lhe esgota a paciência e diz à menina que se não quer se depilar que vá à puta que lhe pariu, e passe vergonha mesmo na frente dos outros que serão obrigados a ver tamanha falta de higiene.

"Você é uma mula, mesmo!"

Momentos como esse eram repassados na cabeça da menina às vezes e vinham junto com aquele sentimento de ter que mexer em coisas bem lá dentro de si que doíam ao serem tocadas somente para agradar a mãe, quando na verdade tudo o que ela gostaria era de tratar daquilo de si para si, da sua maneira e no seu tempo. E diferente da sua mágoa, um monte de outras questões femininas foram feitas à maneira de sua mãe, ou como ela cansara de ouvir, à maneira correta. Seu cabelo quimicamente tratado, as sucessões de dietas sobrepostas das quais se lembrava quando começava mas nunca de quando terminava, os vários tipos de cremes diferentes para partes do corpo que ela sempre se enganava de quais eram, e ad infinito. Quando as pessoas pensam nesse tipo de coisa, a lista nunca tem fim.

Mais vale, para mim que sou calça, pensar no segredo do qual era fiel, ou mais especificamente no que ele culminou. Depois de diversas situações em que a etiqueta social previa roupas mais curtas e mostrativas, e que minha dona, no entanto, insistia em me vestir, parecia crescer dentro dela aquela mágoa ressentida que a fazia medir sua conduta e suas vontades por algo que era natural do seu corpo mas que ela aprendera a considerar como ridículo, não se dando o direito de ser por inteiro, numa espécie de autopunição privativa.

Junto com essa sensação de inadequação crescia a certeza de que desagradava a mãe. Sempre vigilante, pronta para sugerir, opinar, determinar algo. E foi numa dessas ocasiões em que ela parecia antecipar a minha dona, que algo inusitado aconteceu. A mim mais especificamente, que fui destituída da minha função recebida. E aqui você já entendeu que todas nós temos uma função que vai muito além da vestimenta, afinal vestimos pessoas e elas dizem muito mais sobre si com o que vestem do que são verdadeiramente capazes de perceber. E a mãe da minha dona parecia não compreender um décimo do que eu significava para a filha. Tamanha era sua incompreensão que cinco tesouradas em cada coxa mais um metro de linha e quatro nós foram o que bastou para me transformar em outra peça de roupa, uma que a minha dona não possuía porque nem em seus raros e enfraquecidos momentos de ousadia cogitaria em vestir. Confesso que fiquei chocada e só me dei conta de que não era eu, de que era um short, quando vi minhas partes amputadas jogadas de canto.

E antes que o choque me deixe, mais uma vez sou testemunha de outra intromissão materna no exato momento em que minha dona está escolhendo o que vestir. A ocasião é um encontro de família, não com parentes próximos mas com aqueles que se vê muito raramente e com os quais se tenta evitar situações fora de etiqueta porque a impressão que se dá é a impressão que se fica, sabe-se lá por quanto tempo. Para a menina as roupas seriam o de sempre mas o dia e a mãe sugeriam o contrário. Isso ela percebeu ao olhar para o shortinho que eu era, e reconhecer graças aos meus botões e a algumas marcas muito características de uso de que se tratava de mim, e ao mesmo tempo que eu me tornara outra coisa, traidora do seu segredo.

Além de mim e a mãe da minha dona, entrava no quarto também a lâmina, mais rabugenta e amarela do que nunca, já sugerindo à menina a determinação daquela que me segurava. O que se passa a seguir já era o esperado. Uma discussão bem mais acalorada que a do banheiro. Acusações de egoísmo eram jogadas de ambos os lados, enquanto uma invadia a privacidade e o direito de decisão alheio, a outra não pensava na adequação do seu comportamento sobre o olhar de terceiros. E assim se estende até que ambas desistem de decidir a mais culpada e se separaram. Eu e a lâmina, testemunhas daquilo tudo, esperamos jogadas em cima da cama para ver se a minha dona acata ou não à vontade da mãe, se se livra do seu segredo ou assume a ele e aos efeitos adversos que vêm junto.

E enquanto esperamos, a vemos chorar por coisas difíceis e emaranhadas demais para que uma calça entenda. Mas mais incompreensível que a natureza dos seus sentimentos, é a sua atitude seguinte. Finalmente parece se lembrar de mim e da minha acompanhante, e por um instante talvez cumpra com a vontade da mãe. Mas não. Decide nos usar na ordem inversa. Primeiro me veste, sem se incomodar com o fato de que não escondo mais os seus pelos, depois segura a lâmina e olha para ela de uma maneira estranha. Na sua mente aparece uma frase pronta, daquelas com sentido próprio que vai muito além do valor somado das palavras juntas.

"Cruz. Na horizontal, hospital. Na vertical, cemitério."

O caos da sua mente vai para muitas direções mas parece terminar numa tristeza constrangida de quem não conseguiu trazer para fora o que sentia por dentro. Afinal, a lâmina era rabugenta e amarela, não atingia a profundidade necessária, só deixava cortes que mais tarde seriam marcas.

Antes que pense bem no que fez, mais uma intromissão materna, que vendo o quadro todo e compreendendo tudo num átimo, diz o que convém à situação.

"Você é uma mula mesmo!"

A Revolução das Calças (conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora