A LOUCURA FRAGMENTADA
por Silvio Fernando Rodrigues
Livros de memórias costumam ser chatos. Por mais empenho do pesquisador e tragédias que haja na vida do biografado, lá pelas tantas (em geral isso ocorre entre as páginas 180 e 200), o leitor é tentado a se perguntar por que o artista/cientista/político/serial killer de sua predileção não deu ouvidos à máxima de Pascal e passou mais tempo quietinho em seu quarto ao invés de explorar os requintes do próprio umbigo.
A cartilha comum às biografias História familiar – Nascimento – Juventude – Maturidade e Velhice, são, segundo alguns editores, os inimigos naturais na manutenção do interesse do público leitor deste segmento. Afinal, se o biografado não é um assassino em série, qual o interesse em se detalhar ano por ano, os ingredientes de seu bolo de aniversário ou suas notas escolares? (Em Cotidiano & Sacanagens, há militares e pessoas com talento para tal, mas aí, já estamos forçando a barra.
Talvez por serem cineastas, Renoir, Eisenstein e Buñuel escaparam dessa armadilha embaralhando a ordem dos fatos em seus relatos. O autor de Cotidiano & sacanagens não é cineasta, mas além da escrita cinematográfica, possui em comum com o trio o gosto pelas lembranças fragmentadas. Pois a memória da gente é assim mesmo: trai, atrai, distrai. Seduz. É afetiva & olfativa. De maneira fragmentária e acronológica é assim que os personagens de Alex nos contaminam com a sua graça sofrida. Como na vida, eles vêm e vão, sem aviso ou despedida, para ressurgir páginas depois, lampeiros, pedindo uma grana emprestada ou socorrendo o autor em alguma fria. E quando se vão definitivamente - caso de Nê, esposa de Alex, e do gato Ozzy – continuam a povoar causos e lembranças.
Jogadas de só uma vez no liquidificador, na velocidade que permitem os microcontos, elas revelam algo maior do que a figura humana que escreveu estas páginas, revelam um Brasil que foi crescendo e se formando, muitas vezes aos trancos e barrancos, juntamente com o autor.