Esquete Inquérito (sem título)

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No cenário, há uma mesa separando duas cadeiras, que estão de frente uma para a outra. Em cima da mesa, há, apenas, um temporizador. O inspetor PEÇANHA já está na cena. É um homem respeitável, nem muito velho, nem muito jovem. Quando DONA MARIA entra, ele ajusta o temporizador para XX minutos. Ela é uma senhora, mas não muito velha.

DONA MARIA — Por que é que eu estou aqui, inspetor Peçanha? Descobriram o paradeiro do meu filho?

PEÇANHA — Se acalme, dona Maria. Por favor, sente ali, do outro lado da mesa.

Dona maria obedece. Peçanha se senta na cadeira à frente dela.

PEÇANHA — Encontramos o corpo do seu filho.

DONA MARIA ­— Encontraram? Onde?

PEÇANHA — Não posso responder isso ainda

DONA MARIA (indignada) — E pode dizer o porquê disso?

PEÇANHA — Por razões de estrutura narrativa.

DONA MARIA (confusa) — O que?

PEÇANHA — Acontece, dona Maria, que eu não posso lhe contar tudo de uma vez só, ou essa história perderia seu propósito.

DONA MARIA — Do que você está falando, homem? Ficou maluco?

PEÇANHA — Muito pelo contrário. Estou mais lúcido que o usual. Além disso, o desenrolar de toda a história deverá acontecer em até XX minutos, ou então este esquete terá um fim prematuro. (aponta para o temporizador) Veja, o temporizador já começou a contar.

DONA MARIA (contrariada) — O que você quiser, só quero saber do paradeiro do meu filho.

PEÇANHA (enquanto se levanta) — Maravilha. Preste muita atenção, portanto, no que irei explicar agora.

O inspetor tira um baralho do bolso.

PEÇANHA (enquanto embaralha) — Tenho, aqui, um baralho. Quando eu terminar de embaralhar, você cortará o monte. Depois, eu virarei as cartas, uma a uma, e as mostrarei a você. O que nos interessa, neste caso, são as damas.

DONA MARIA — O que tem elas?

PEÇANHA — Contarei a você uma parte da história que revela o que aconteceu com seu filho cada vez que uma dama aparecer.

DONA MARIA (irônica) — Por razões de estrutura narrativa?

PEÇANHA — Para adicionar o elemento do suspense, também. Mais para a frente, isso ajudará a criar um bom clímax.

DONA MARIA (impaciente) — Pois então comece a virar as cartas, homem de deus!

Peçanha dá o monte para dona Maria cortar. Depois, começa a virar as cartas. Ao fundo, um som que lembra o mecanismo de um relógio começa a tocar. Peçanha diz, em voz alta, todas as cartas que abre. Quando vira a primeira dama, ele diz qual é a carta em voz alta, mostra ela para a plateia e para.

PEÇANHA — A arma do crime. Uma faca de churrasco. Pelo menos é o que nós achávamos, até que o médico legista fez, sob minha ordem, uma investigação mais minuciosa no corpo e encontrou veneno no cérebro da vítima.

DONA MARIA (surpresa) — Oh!

PEÇANHA — Sim. Um tipo muito específico de veneno, ministrado através do ouvido. A facada foi apenas uma distração. O que concluímos com isso é que o assassino não queria um enfrentamento direto, provavelmente por medo de que não poderia vencer.

DONA MARIA — Minha nossa! Diga, inspetor, por acaso o senhor já leu Hamlet?

Mas o inspetor já está, novamente, com o baralho na mão, e sua resposta é apenas falar a próxima carta em voz alta. Os sons de relógio voltam enquanto o inspetor passa pelo baralho. Eventualmente, ele tira a segunda dama. Ele fala qual é a carta em voz alta e, mais uma vez, a mostra para a plateia.

PEÇANHA — O local.

Dona maria se inclina para frente na cadeira.

PEÇANHA — Encontramos o corpo do seu filho enterrado em uma pequena floresta, logo ao norte da cidade. Ele estava embalado em sacos plásticos, por isso se decompôs pouco nesses dias que se passaram, o que ajudou na autópsia. No entanto, (faz uma breve pausa) fica claro que ele não foi morto lá.

DONA MARIA — E o que pode ter acontecido, inspetor?

PEÇANHA — Até agora, já sabemos que ele foi envenenado, provavelmente enquanto dormia, e esfaqueado, para que a polícia perdesse o foco no veneno. O corpo foi relativamente bem embalado, e depois transportado até a floresta ao norte da cidade. Ainda nos faltam algumas peças de informação.

Antes que dona Maria possa falar algo a mais, Peçanha recomeça o ritual das cartas. Os sons de relógio voltam, agora um pouco mais rápidos do que antes. Quando a terceira dama é encontrada, a mesma cena de antes se repete: Peçanha fala a carta em voz alta e a mostra para a plateia.

PEÇANHA — Me diga, dona Maria. A senhora sabe o que é um smartwatch?

DONA MARIA (assustada) — Um smartoquê?

PEÇANHA — A terceira informação é o horário do crime. E você precisa saber o que é um smartwatch para entender. É um aparelho que parece um relógio de pulso, mas faz muito mais do que apenas contar as horas.

DONA MARIA — Menino, tem isso?

PEÇANHA — Sim, dona Maria. Mas o mais importante é que o smartwatch marca os batimentos cardíacos do usuário. Dessa forma, podemos saber exatamente o horário que o seu filho morreu. Mas, antes, vamos terminar este baralho.

Peçanha volta a virar as últimas cartas do baralho. Dessa vez, os sons de relógio estão mais rápidos, mas também vão ficando ainda mais frequentes conforme o baralho vai acabando. A cena fica frenética conforme Peçanha chega nas últimas cartas. Quando ele chega na última carta do baralho, todos os sons param. O inspetor vira a carta e a fala em voz alta. Não é a dama de copas, que está faltando. Dona Maria se levanta e mexe nas cartas da mesa.

DONA MARIA (exaltada) — A dama de copas! Onde está a dama de copas?

PEÇANHA — A dama de copas, Dona Maria, é você.

Dona Maria para de mexer nas cartas da mesa e olha para o inspetor. Ela está sorrindo.

DONA MARIA — Desculpe?

PEÇANHA — Temos cinco informações cruciais para entender completamente o crime: a arma, o local e o horário eu acabei de revelar. Quem cometeu o crime, dona Maria, foi a senhora.

Dona Maria dá uma risadinha.

PEÇANHA — Apenas nos resta entender o porquê. No entanto, do que realmente precisamos aqui é a sua confissão.

DONA MARIA — Estou completamente chocada, inspetor. Por acaso você tem qualquer embasamento para fazer essa acusação ridícula? Ter a coragem de dizer que uma mãe mataria seu próprio filho?

PEÇANHA — Encontramos o veneno enterrado no seu jardim, resquícios de terra seca no seu carro e o horário da morte de seu filho indica que ele dormia na sua casa enquanto tudo ocorreu. A única forma de você se livrar da prisão é tendo um álibi, e você não tem. Nós precisamos apenas da sua confissão para tornar o processo menos demorado.

Dona Maria, agora, ri com mais gosto.

DONA MARIA — Você falou uma coisa importante, inspetor. O processo é demorado. E eu lamento muito ter que lhe dizer que o tempo desse esquete acabou.

Dona Maria aponta para o temporizador, que chegaao final dos XX minutos e toca um alarme. Elari. O inspetor olha, assustado, para a plateia. As luzes apagam.

Esquete inquérito (sem título)Onde histórias criam vida. Descubra agora