Anjo Vingador

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A idéia não parecia ruim, avaliou Helena uma última vez, lembrando-se de como sua vida mudara nos últimos meses. Os pensamentos, contudo, tornaram-se turvos, disformes, nebulosos, até que ela tropeçou e caiu. Estava exausta e, apesar de não sangrar, o enorme hematoma preto arroxeado na altura das costelas mostrava que não estava bem. Era um ferimento que talvez médico algum pudesse curar, pois o mesmo ser que fizera aquilo havia também ferido sua alma.

Talvez seja meu destino, pensou ao notar que a rua escura para onde fugira era um beco sem saída.

Cada arfar seu era uma agonia, cada movimento, uma conexão com a dor, o desespero, a loucura que levara àquilo. Mesmo assim ela tentou botar as idéias no lugar. Fechou os olhos e procurou ouvir o repugnante chiar de sua criação chegando. Não havia nada, entretanto, a não ser o silêncio. Mesmo assim, mais uma vez os pesadelos que a acompanhavam há meses passaram em frente a seus olhos:

Primeiro, fora a morte de seu marido, a destruição de seu amor, de sua vida; então, a incapacidade da polícia de achar os culpados, punir alguém por sua perda; depois a raiva, tão profunda que fez com que ela, uma pacífica folclorista, voltasse tudo o que estudara, toda sua existência para uma coisa somente, a vingança... vingança por seu Nicolas, por sua perda, por sua própria dor; agora, aquilo...

O que buscou, na realidade, não era nada mais do que diversas sociedades secretas que ela mesma estudara, como a Fraterna Ordem do Anjo Exterminador, também não houvessem feito antes: eliminar, magicamente, pragas sociais, pessoas indesejáveis, assassinos, como os de seu esposo. É claro que, ao iniciar aquilo, as possíveis conseqüências pareciam cabíveis, pequenas até...

Haviam sido dias no cemitério, noites em claro e muito de sua sanidade até que Helena, tendo conseguido achar um derradeiro resquício de energia astral dos assassinos, deu a ordem.

Os judeus o chamavam de Golem, os ocultistas, de Elemental Artificial, a bruxaria, de Guardião... ela mesma o chamara de 'Anjo Vingador': um ser criado e moldado de acordo com sua vontade, para obedecê-la. – Siga este padrão energético... e  mate! – ela havia ordenado, mesmo sabendo que o monstro não só mataria, mas destruiria aquelas pessoas. Sim, pois estes seres destroçam o corpo astral junto com o físico, antes que a alma tenha a chance de sair, destruindo-a completamente. Na época, contudo, ela achava que eles mereciam!

– O que deu errado? – tossiu, voltando ao presente e buscando em sua memória detalhes que pudessem ajudá-la contra sua criação. A dor em seu peito era a resposta. Seu primeiro equívoco, lembrou, foi que após seu 'Anjo Vingador' haver matado, provado sangue, ela não mais foi capaz de controla-lo.

É claro, pensou, percebendo o monstro, um ser de energia astral, ilógico à luz da ciência moderna, que mais uma vez havia feito o impossível, matando as pessoas que ela mesma descobrira haverem sido responsáveis pela morte de seu Nicolas, só voltara-se contra ela, ferindo-a gravemente, quando, depois de haver negado sangue, ela, sem o devido conhecimento ou poder, tentou destruí-lo.

O sibilar sinistro soou de repente em seus ouvidos, tirando-a de seu pesadelo acordado e colocando-a em outro. Sua espinha gelou quando finalmente ela pôde ver sua criação através dos olhos dos assassinos de seu marido, de suas vítimas.

Tinha quase dois metros e meio, cinzento, quase prateado em sua transparência fantasmagórica, a mistura de um enorme gorila com algum inseto repugnante, como um demônio dos antigos bestiários que ela e Nicolas tinham em sua coleção. Olhos enormes, multifacetados e sem pálpebras, percorriam a folclorista com uma fome inominável, de sua mandíbula demoníaca saía um som surdo, rouco, parecendo algo entre o soar vento e o metal raspando em metal.

Helena sentiu um ímpeto de levantar e fugir gritando, mas suas pernas não respondiam. Engoliu em seco, somente agora entendendo o quão horrível poderia ser a visão daquele demônio para um coração que carregava a culpa.

Mas não será assim!, gritou algo dentro dela no exato momento em que uma idéia iluminava sua mente. – Novamente criador e criação se enfrentam, ela pensou, sentindo uma estranha confiança tomar conta de seu corpo. – como tantas vezes aconteceu nos

mitos, na história... – e com uma força vinda do nada, levantou-se.

Ela sorria acintosamente para seu Anjo Vingador. A mão, que antes segurava a área do hematoma, soltou-se e, com uma lâmina, cortou o local fazendo seu sangue verter copiosamente..

– Sangue e medo! – falou alto, as palavras saindo automáticas de sua boca num desafio implícito ao golem. – Venha...

O ser chiou em resposta. Irado então, lançou suas garras horrendas em direção às costelas da moça num ataque de urso. Ela estava preparada desta vez e, ao contrário de seu primeiro embate, desviou-se facilmente. Sabia o que fazer agora... ou pelo menos achava que sabia. – Você não pode me matar... – mentiu ela. Queria ter imprimido confiança, mas a voz saiu fraca como o murmúrio de uma criança – pois se eu morrer, você também morrerá!

Aquelas palavras, entretanto, não eram mais do que um blefe e Helena sabia disso. Sabia também que se sua criação descobrisse como se alimentar, poderia sobreviver sem ela. O pior, sabia que se isso acontecesse, ele tornar-se-ia um vampiro assassino, alimentando-se da essência vital do sangue de suas vítimas. Sabia e estava determinada a não deixar isso acontecer. Estranhamente, o monstro recuou, considerando aquelas palavras.

Aquele era o momento que esperava. Esquecendo-se da dor, ela limpou sua mente, relaxou e, olhando para o monstro, buscou o foco de seu poder, seu 'coração', aquele que deveria destruir para terminar com aquele pesadelo.

Cada músculo em seu corpo estava preparado quando o Elemental atacou. Ela não desviou. Deixou as garras astrais penetrarem fundo em sua barriga, rasgando seus intestinos. Decidida, mandou tudo o que restara de sua energia para as mãos e lançou-se contra a criatura, mirando o coração.

Sua barriga parecia arder em chamas e uma golfada de sangue subiu-lhe a garganta. Engasgou. Mesmo assim a única coisa que importava naquele momento era o ponto que brilhava leitoso no meio a névoa que formava o Golem. As mãos dela, que agora mais pareciam garras, fecharam-se nele. A energia do monstro voltou-se para a origem, que agora estava sendo destruída; então, explodiu.

Helena foi lançada longe. Bateu forte num dos muros do beco, então contra o asfalto duro. Mas tudo bem, ela podia já estar morta, mas havia cumprido sua missão...

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