Superação ( Peeta)

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   Após os Jogos e toda a rebelião dos distritos, além da lavagem cerebral que Snow fez em mim para matar Katniss, ainda me sinto perdido. Às vezes, não sei o que é real ou implantado em minha mente.

Voltei para o Distrito 12 alguns meses após a guerra. Fiquei mais um tempo no Capitol, com medo de voltar com Katniss e ter alucinações que pudessem colocá-la em perigo. Mesmo depois da reconstrução, a destruição do nosso lar e a perda da maioria das pessoas que conhecíamos ainda me assombram. O pior é que, às vezes, não sei se certas lembranças são verdadeiras ou falsas.Prefiro me isolar, passar todo o meu tempo na Vila dos Vitoriosos, trancado em meu quarto ou no ateliê pintando. Eu e Katniss quase não nos vimos desde que cheguei, há cerca de um mês. Hoje ela veio me ver, mas minha cabeça está girando e meus sentimentos clamam por solidão. Chego até a cozinha para cumprimentá-la, mas, antes que eu possa dizer qualquer coisa, ouço suas palavras que penetram em mim como uma bala perfurando meu corpo.— Sinto sua falta, Peeta.Percebo que ela procura em meu olhar algo que reconheça, algo bonito que ela vê em mim e que temo não existir mais. Ouvir a dor em suas palavras me faz odiar ainda mais esses pensamentos e o desejo insano de querer solidão, embora saiba que ambos precisamos dela para viver. Na verdade, PRECISAMOS UM DO OUTRO para nos salvarmos, minha razão diz ao meu ser. Sinto uma vontade enorme de abraçá-la e, quando o faço, aperto-a forte, sem querer soltá-la. Uma faísca de esperança se acende em mim, pensando que um dia ainda poderemos ser felizes.Na noite seguinte, Haymitch, que se tornou nossa família, veio me visitar.— Não sei quem consegue ser pior, Peeta: você, se perdendo no seu mundo, Katniss, que nunca dorme, ou eu, com minha bebedeira incansável. Belo grupo de fracassados somos nós. Essa situação tem que ter fim. Para mim, já é um caso perdido, mas você e Katniss ainda podem refazer suas vidas.As palavras dele doem por serem a realidade. Mesmo sentindo o cheiro de álcool que saía de sua boca, suas palavras eram sábias de uma maneira esquisita. Não gosto da situação; como ele disse, essa situação tem que ter fim. A pior dor é ver minha família sofrendo. Quando me isolo, pelo menos não vejo nada, não sinto nada além da minha própria dor. Nada me afeta, apenas minha própria história. Mas, aqui fora no mundo, sinto a dor deles. Não posso suportar isso.— Haymitch, acho que todos nós deveríamos viver. Se nos entregarmos ao mar de sofrimento, os Jogos vencem. Temos sorte de estarmos aqui, neste momento, em um mundo diferente, que ajudamos a mudar.— Pois é, garoto, você sempre foi o mais esperto de nós. Boa noite, por hoje, pelo menos. Vá dormir, que vou para casa vomitar.Nos despedimos, e eu fui para o quarto, onde me deitei e olhei para o teto. A breve conversa com Haymitch me fez pensar em um plano de contingência para ser uma versão de mim sem minhas dores, para ajudar as pessoas ao meu redor a terem uma vida melhor. Pensei em Haymitch e senti sua preocupação com meu futuro e o de Katniss, quase como um sentimento paternal. Pensei sobre o motivo de Katniss não dormir; seus pesadelos eram maiores que seu cansaço, mas não foi difícil pensar em mil motivos para isso. Eu sei de uma solução e, enfaticamente, sou eu. Pensei sobre meus pesadelos, também não é difícil imaginar os mil motivos para isso. Mas também pensei em não pensar mais nisso. Só que é difícil não pensar em quase matar Katniss. Se eu tivesse conseguido? Teria morrido junto. Se ela jamais me perdoasse? Se desistisse de mim? Mas ela não desistiu e, por isso, jamais desistirei dela. Vou tentar deixar o passado onde pertence. Tentar me curar para tirar esse fardo pesado de cima daqueles que amo. Penso na Katniss, no meu amor por ela. Eu a amo? Amo. Não dormirei esta noite, pensando.Alguns dias se passaram desde que minha busca por ser uma nova versão de mim mesmo começou. Admito que não tem sido fácil, ainda com muitos pesadelos e, às vezes, ataques de pânico que parecem que as paredes vão me engolir. Mas a vida segue.Levantei da cama, mais um dia sem dormir, e fui direto para o ateliê pintar. Só consegui pintar Katniss.Passando do meio-dia, ouvi a porta da casa abrir. Sabia que era ela, não sei se pelo jeito de pisar ou pelo cheiro de flores que Katniss sempre cuidava. Corri do ateliê, não queria que ela visse minhas pinturas. Fui encontrá-la na cozinha.— Oi, Peeta, como se sente hoje?Não sei o que responder, pois não quero mentir e, ao mesmo tempo, não quero sobrecarregá-la com minhas frustrações. Apenas olhei para baixo.— Tudo bem, não vou te incomodar. Só vim perguntar se gostaria de almoçar. Você nunca come — disse ela.Ela deu as costas rapidamente, já quase saindo pela porta. Sem pensar muito, falei:— Quer almoçar? Vamos cozinhar juntos. O que acha?Vi seu rosto se iluminar no mesmo instante, mas ela não disse nada, apenas voltou a se encostar na mesa. Ficamos um tempo sem dizer uma palavra, apenas cozinhando, até que eu quebrei o silêncio.— A gente não tem conversado muito ultimamente. Estou vendo você abatida. Apesar de morarmos um ao lado do outro, não nos vemos muito. Sei que isso é muito minha culpa, mas obrigado por não desistir de mim. E você, Katniss, como está?— Isso não é sua culpa. Nós não temos culpa disso tudo. Somos meras peças desse tabuleiro cósmico. Estou tentando sobreviver. Não consigo dormir, tenho muitos pesadelos com a arena, os Jogos, a morte de nossos amigos, Snow, a morte da Prim. Tudo isso ainda me assusta. Só consigo cochilar às vezes, quando a Prim vem em meus sonhos. Ela só sorri para mim e, às vezes, faz tudo ficar bem por uns momentos.Eu já sabia de tudo isso, mas ouvi com calma, pois ouço seus gritos à noite, mesmo estando do outro lado da rua.— E gosto de ficar só, mas gostaria de te ver mais. Eu poderia dormir aqui algumas noites, no seu outro quarto, ou você lá. Gostaria de ter você mais perto de mim.Pensei rapidamente em ficar lá. Não gostaria que ela entrasse em meu ateliê e visse todas aquelas pinturas sobre ela.— Posso dormir lá com você, Katniss. Acho que me faria sentir melhor.Ela ficou feliz, deu para ver em seu rosto, apesar de tentar esconder. Eu a conheço, conheço mais que a mim mesmo.Após nosso almoço, Katniss me ajudou a levar minhas coisas para um segundo quarto em sua casa, ao lado do dela. Katniss foi para a floresta caçar, e eu fui para meu ateliê pintar a única coisa que importava para mim, mais que minha própria vida: pintar Katniss.Chegou a noite e fui direto para o banheiro tomar um banho quente, tirar toda a tinta do meu corpo e relaxar. Deixei a água quente escorrer por meus músculos e fechei os olhos para pensar. Só conseguia ver, em meus pensamentos, o rosto de Katniss, linda, com aqueles olhos cinza e sua trança de lado.Saí do banho, coloquei apenas a calça do meu moletom e fui para a cama em meu novo quarto. Fiquei olhando para o teto, girando na cama de um lado para o outro. Ouvi os passos de Katniss pelo corredor, saindo do banheiro em direção ao seu quarto. Admito que o som desses passos foi reconfortante para mim. Sem conseguir dormir, passei mais um tempo em claro. Decidi me levantar e, olhando pela porta entreaberta do meu quarto, vi a porta do quarto de Katniss. Resolvi ir até lá, devagar, quase parando, pensando se era mesmo isso o que eu queria.Na minha cabeça, ouço minha voz em duas versões diferentes de mim. Uma voz, que representava meu antigo eu, diz para não ir até lá. Mas a outra voz, que representava quem eu quero ser, diz para ir. Além da minha voz dividida, todo o meu corpo, desde o dedo mindinho do pé até o fio mais longo da cabeça, diz que a quero. Obedeço a essa voz. Estar com ela, abraçá-la, sentir seu cheiro, vê-la dormir, acariciar seus cabelos era tudo o que mais queria nesse momento.Bati na porta do seu quarto, e meu coração bateu conforme a batida da porta.— Katniss, posso entrar?Ouço seus passos vindo em direção à porta. Ela a abre e vejo seus olhos marejados e vermelhos de chorar. Ela se joga em meus braços, e eu a abraço com toda a minha alma.

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