Foi o Diabo

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Me admira olhar para o passado e lembrar do quão cética eu era. Por vezes me pegava pensando em como pessoas atribuem qualquer coincidência que lhes acontece a Deus e em como eu virava os olhos sempre que alguém me dizia: "Foi Deus, menina!". Era uma frase constante e corriqueira na minha — e acredito que na sua — vida. Ouvia isso de todo mundo e em todo lugar, como se existisse um pacto que proibia as pessoas de aceitarem que algo pode acontecer simplesmente por acontecer. Que não foi Deus quem achou a carteira com todos seus documentos na padaria, foi a atendente; que não foi Deus quem fez o dinheiro cair na sua conta justo no dia que você mais precisava, foi seu chefe; que não foi Deus quem te fez ficar em casa no dia daquele terrível acidente, foi, de certo modo, você.

Um amigo seminarista me falou que atos desse tipo podem, sim, ser obras divinas, que Deus utiliza diversos subterfúgios para nos ajudar, nos fazer instrumento da vontade d'Ele. Tais subterfúgios podem vir como visões, sonhos, palavras ou atos de um ente querido ou de um estranho. Entretanto, nem sempre somos capazes de entendê-los. Eu, com todo o ceticismo que tinha na época, respondi que aquilo era mais vago do que horóscopo do dia. Era muito fácil dizer: "Eu tive um sonho. Juro que foi uma visão de Deus!". Mas como se prova isso? Não tem como. Quantos suicídios coletivos e tiroteios em escolas começaram desse jeito?

"Todas as coisas acontecem por um motivo, Lucila. Até as mais simples", ele me disse sorrindo, antes de se despedir. "Nenhuma folha cai da árvore se não for da vontade de Deus."

Mas crer nisso seria de alguma forma aceitar que não somos responsáveis por nossos atos. Ou assim eu pensava até ter uma revelação. E imagine o quão surpresa fiquei ao saber que revelações não vêm de maneiras extravagantes, como dizem as pessoas ou como mostram os filmes; mas sim de forma tão simples e corriqueira quanto um conto de Clarice.

No meu caso, foi enquanto atravessava a rua. Simples, de fato, mas real. E você verá, quando eu finalmente tiver acabado, que tal ato — ainda que arquitetado para me fazer crer — aconteceu não por obra de Deus, mas sim do diabo. E, irmão, se existe o diabo — pois sou uma pessoa lógica de nascença e a fé não mudou isso —, também existe Deus.

Eu tinha aproveitado o meu horário de almoço para buscar meu filho, Luís Carlos, na escola. Teria que correr para deixá-lo na casa de minha mãe e ainda ter tempo de voltar para o trabalho. Sequer almoçaria. Para completar meu tormento, eu não conseguia dormir direito por quase uma semana. Duas ou três horas por dia, no máximo, pois tinha sonhos atormentadores; e sonhos atormentadores levam a pensamentos atormentadores; e pensamentos atormentadores levam ao mais impensável dos atos. Eu não percebi no tempo, mas o diabo já executava suas artimanhas sobre mim.

Eu andava lado-a-lado com Luís, segurando sua mãozinha, e em momento algum ele parou de reclamar.

"Mãe, me carrega?"

"A mamãe está cansada."

"Mas eu também tô!"

"Você já tem seis anos, Luís. Tem que aprender a andar sozinho. Fica até feio, um menino desse tamanho andando no colo para cima e para baixo."

"Tá calor! E vai demorar pra gente chegar."

"Que vai demorar, menino? Tua avó mora bem ali."

"Mas eu quero ir no braço!"

Tentei dialogar primeiro, depois, ignorá-lo, e quando tudo o que eu conseguia ouvir em minha cabeça era a voz dele — MÃEMÃEMÃEMÃEMÃEMÃEMÃE! —, eu cedi. Carreguei Luís mesmo sem ter forças. Quando chegamos perto da BR-104, que tínhamos de atravessar para chegar à casa de minha mãe, ele me olhou nos olhos e disse:

"Quero descer."

Eu respirei fundo, furiosa, mas minha coluna agradeceu quando o coloquei no chão. Mais uma vez, segurei a mão dele. Impaciente, ele me puxava para ir mais rápido.

"Luís, não puxa! Não está vendo que vem carro?"

E os carros surgiam em disparada, soltando lufadas de ar em nossos rostos.

Luís continuou em sua teimosia e eu percebi um fraco zunido em minha bolsa. Pus a mão lá dentro e peguei meu celular. Era meu chefe. Atendi.

"Luís, não puxa!", sussurrei, dando um olhar matador para meu filho, antes de voltar a atenção para meu chefe.

Aconteceu em segundos, mas eu estaria mentindo se dissesse que não notei Luís se soltar de minha mão. Na realidade, tinha certeza que poderia puxá-lo pela gola e gritar com ele, mas algo me conteve. Foi aí que tive a revelação. Sem anjos descendo do céu, sem vozes ecoando em minha cabeça. Apenas um pensamento, uma fagulha que me dizia para deixá-lo ir, pois à direita os carros se aproximavam. E essa fagulha incandescia-me da cabeça aos pés, trazendo-me um leve sorriso no canto do rosto.

Eu observei a cena com mórbido interesse. Um dos carros havia se chocado com uma árvore e esmagado o motorista, dois haviam capotado para fora da estrada e o resto, se empilhado em uma fileira de destroços.

A chama de esperança que em mim queimava tão subitamente se tornou decepção quando enfim avistei meu filho, intacto, do outro lado da rua.

Eu me senti envergonhada pelos pensamentos que haviam acabado de trespassar minha mente, mas apenas porque não tinha a compreensão que tenho hoje. Por que me envergonhar quando tudo o que acontecera fora um ato sobrenatural? Algo arquitetado por alguém infinitamente mais inteligente do que eu para me desenterrar de meus pensamentos céticos.

Agora vê como eu estava certa? Foi o diabo. Foi o diabo, foi o diabo. E não há pessoa no céu nem na terra que me convença do contrário.

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4º colocado no Edital Prêmio Diversidades Literárias de Alagoas, da Lei Aldir Blanc, pela Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas

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Eu Sou Uma Fábrica de ProcrastinaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora