A cela 2B do presídio Mãe de Deus era exatamente como Breno imaginava: um lixo. Um cubículo retangular composto por 3 paredes acinzentadas de um reboco que não se decidia entre uma parede deteriorada com a passagem do tempo, ou simplesmente mal feita. Breno desconfiava que talvez ambas as respostas estivessem certas.
As paredes laterais, finas e mal acabadas, tratavam-se de simples divisórias com as celas vizinhas. Não era raro ouvir batidas oriundas dos joelhos e cotovelos dos presos que agitavam-se em pesadelos angustiantes. Normalmente acompanhados de um ou outro suspiro de inquietação.
Em uma das paredes laterais, ficava a beliche que Breno dividia com Cebola. Cebola era um tipo mais judiado pelo tempo. Nunca revelara abertamente sua história, mas pelo pouco que deixava escapar pelas entrelinhas, Breno concluía que seu colega tivera uma vida difícil. Era preto, magro, sem modos, ignorante, e o resto da história não é difícil de se imaginar.
Cebola dormia na cama de baixo, e ocupava seus dias fumando e lendo a Bíblia. Breno não entendia como ele conseguia distinguir alguma palavra na sombra produzida pela cama de cima da beliche, mas esse era um assunto irrelevante.
Frente ao corredor ficavam as grades da cela, exatamente como se viam nos filmes realistas da década de 90. Barras de ferro circulares, sujas, carcomidas em um misto de ferrugem com sujeira. No canto direito das grades ficava o portão com um enorme ferrolho, que dava diretamente para a privada. O ferrolho era velho e constantemente emperrava, fato que fez Breno e Cebola perderem incontáveis banhos de sol.
Nos fundos da cela, uma pequena janela retangular, também guardada por barras de ferro traziam vida à expressão que Breno tantas vezes ouvira em sua vida anterior à cadeia, afinal, o Sol de fato nascia quadrado por entre aquelas barras, produzindo um efeito de luz e sombra que tornava o ambiente ainda mais aflitivo.
Em um desses muitos dias em que o ferrolho de sua cela cismou em não abrir, Breno decidiu que tomaria sol através da pequena janela, prostrando-se próximo à grade, de forma que os raios de sol atingiam em cheio as costas do seu macacão.
Ficou ali parado com as mãos nos bolsos durante alguns bons segundos, prestando a atenção no efeito que sua sombra causava no chão. Concluiu com um pouco de raiva que até seu espectro encontrava-se atrás das grades.
- Eu odeio esse lugar.
Foi tudo que pôde dizer. Cebola, oculto na sombra entre a cama de cima e a de baixo da beliche não deu ouvidos ao colega, que continuou:
- A comida daqui... Nem parece comida.
Breno mantinha seu olhar vago e distante. Apesar de seu corpo físico estar ali, sua mente claramente divagava, imaginando a gororoba que a tia Neri servia. Não era raro encontrar insetos no meio dela. Ele prosseguiu:
- E os chuveiros.... Porque a água tá sempre gelada?
Procurou trazer uma entonação um tanto dramática à sua voz, mas logo suas próprias memórias abafaram-se. Lembrou-se desgostoso de um outro preso de forte estatura que lhe lançava olhares cheios de desejo durante o banho. Percebeu que a água gelada nem era o pior dos problemas em um banheiro de presídio, afinal de contas.
A pena de si mesmo transbordava em seu íntimo, embora se mantivesse irredutível com sua expressão vaga. Achava-se tanto para o pouco que a cadeia lhe parecia ser, e isto lhe causava um rebuliço no estômago.
- Eu sou tão diferente de todos daqui. Esse com certeza não é o meu lugar.
Ao ouvir estas últimas palavras, Cebola um tanto incomodado com o monólogo de seu colega, decidiu intervir:
- Não zomba de nóis, dotô...
Disse isso largando a Bíblia na cama, e levantando-se. Breno suspirou incomodado com a interrupção, mas não virou-se. Cebola calmamente caminhou desabotoando a calça jeans surrada, dirigindo-se até a privada no canto oposto da cela. Após abaixar as calças e sentar no trono, completou sua sentença de forma vagarosa, como gostava de fazer.
- Tu é um de nóis agora.
A cólera apossou-se de Breno ao ouvir tais palavras. Não apenas por se considerar um ser humano de muito mais refinada estirpe do que aqueles brutamontes sem cultura que ali conviviam, mas por sentir que muito provavelmente Cebola estava certo. Extravasou sua frustração socando os ferros da grade com o lado dos punhos, o que lhe causou uma dor quase que apaziguadora, afinal, ela desviava sua atenção por alguns instantes.
Após checar a mão direita, concluiu que não havia se machucado, apesar da dor. Passou os olhos pela mão esquerda e viu em seu dedo anelar a marca da aliança, da qual teve de se desfazer ao entrar no presídio. Lembrou-se da esposa e sentiu sua alma pesar novamente.
- Ah, a Lívia... eu sinto tanta falta dela.
A voz de Breno assumiu uma entonação um pouco mais desolada nesta última pronúncia, mas o olhar continuou vago e frio.
- Sempre tão linda...
Imagens da esposa em todo seu esplendor vinham-lhe à cabeça. Sem dúvida Lívia era uma mulher atraente, do tipo que fascina até com suas corriqueiras roupas caseiras.
Breno lembrava-se do quanto era diferente de todos. Sempre sentia-se um misto de bagunça e imparidade, como se não pertencesse à sociedade e aos locais comuns às pessoas comuns. Pensava em como Lívia o fizera sentir parte daquilo tudo, mesmo que em poucas ocasiões.
- Sabe, Cebola, poucas pessoas compreendem a minha confusão...
Cebola parecia não dar ouvidos a Breno. Já estava no presídio há anos, certamente o companheiro não foi o primeiro personagem que viu falando sozinho por aquelas bandas.
- Esse sempre foi o talento dela.
Breno parecia estar em outro plano. Lembrava da esposa lhe servindo um jantar sorridente, ocupada em suas tarefas do mestrado, ou com as pinturas que fazia ocasionalmente.
- Esse e muitos outros... - Concluiu, com um pouco de orgulho da mulher.
Cebola à esta altura já não conseguiu mais manter-se indiferente à fala do colega, não por interesse, mas por desistência mesmo. Breno não se calaria, não importava a intensidade do silêncio que receberia em troca. Acendeu um cigarro, ainda sentado na privada, e perguntou:
- Me parece muito boa essa tua mina... Por que ela não vem te visitar?
Ficou parado por um instante, achando que Breno se voltaria para trás para conversar de forma decente e lhe olhar nos olhos, como supunha que um homem faria, mas percebeu que o colega parecia ter ficado ainda mais cabisbaixo, movimento que sua sombra acompanhou no chão do corredor à frente.
A dúvida de Cebola conduziu Breno justamente para onde ele não queria que a conversa chegasse, mas para onde sabia que deveria ir. Ainda com o olhar distante, desta vez com uma imagem muito mais mórbida em sua mente, Breno concluiu seu lamento:
- Eu a matei.
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Perda
Short StoryComo é de se esperar, Breno odeia a prisão. O engraçado é que ela parece odiá-lo também. Faz questão de lembrá-lo a cada momento de onde está e que lá fora existe um mundo de verdade, com pessoas de verdade vivendo, e que ele já não faz mais parte d...