Capítulo 43 - Você tem medo?

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De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e perguntou-me se tinha medo.

—Medo?

—Sim, pergunto se você tem medo.

—Medo de quê?

—Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...

Não entendi. Se ela me tem dito simplesmente: "Vamos embora!" pode ser que eu obedecesse ou não; em todo caso, entenderia. Mas aquela pergunta assim, vaga e solta, não pude atinar o que era.

—Mas... não entendo. De apanhar?

—Sim.

—Apanhar de quem? Quem é que me dá pancada?

Capitu fez um gesto de impaciência. Os olhos de ressaca não se mexiam e pareciam crescer. Sem saber de mim, e, não querendo interrogá-la novamente, entrei a cogitar donde me viriam pancadas, e por que, e também por que é que seria preso, e quem é que me havia de prender. Valha-me Deus! vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. Também vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correção. Todas essas belas instituições sociais me envolviam no seu mistério, sem que os olhos de ressaca de Capitu deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo. O erro de Capitu foi não deixá-los crescer infinitamente, antes diminuir até às dimensões normais, e dar-lhe o movimento do costume. Capitu tornou ao que era, disse-me que estava brincando, não precisava afligir-me, e, com um gesto cheio de graça, bateu-me na cara, sorrindo, e disse:


—Medroso!

—Eu? Mas...

Não é nada, Bentinho. Pois quem é que há de dar pancada ao prender você?

Desculpe que eu hoje estou meia maluca; quero brincar, e...

—Não, Capitu; você não está brincando; nesta ocasião, nenhum de nós tem vontade de brincar.

—Tem razão, foi só maluquice; até logo.

—Como até logo?

—Está-me voltando a dor de cabeça; vou botar uma rodela de limão nas

fontes.

Fez o que disse, e atou o lenço outra vez na testa. Em seguida, acompanhou- me ao quintal para se despedir de mim; mas, ainda aí nos detivemos por alguns minutos, sentados sobre a borda do poço. Ventava, o céu estava coberto. Capitu falou novamente da nossa separação, como de um fato certo e definitivo, por mais que eu. receoso disso mesmo, buscasse agora razões para animá-la. Capita, quando não falava, riscava no chão, com um pedaço de taquara, narizes e perfis. Desde que se metera a desenhar, era uma das suas diversões; tudo lhe servia de papel e lápis. Como me lembrassem os nossos nomes abertos por ela no muro, quis fazer o mesmo no chão, e pedi-lhe a taquara. Não me ouviu ou não me atendeu.

Dom Casmurro - Machado de AssisOnde histórias criam vida. Descubra agora