Capítulo 4

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Havia certamente duas horas que assim dormia, denso e estirado no catre, quando me pareceu que uma claridade trêmula, como a de uma tocha fumegante, penetrava na tenda, e através dela uma voz me chamava, lamentosa e dolente:

- Teodorico, Teodorico, ergue-te, e parte para Jerusalém!

Arrojei a manta, assustado; e vi o doutíssimo Topsius, que, à luz mortal de uma vela, bruxuleando sobre a mesa onde jaziam as garrafas de Champagne, afivelava no pé rapidamente uma velha espora de ferro. Era ele que me despertava, açodado, fervoroso:

- A pé, Teodorico, a pé! As éguas estão seladas! Amanhã é Páscoa! Ao alvorecer devemos chegar às portas de Jerusalém!

Arredando os cabelos, considerei com pasmo o sisudo, ponderado doutor:

- Oh Topsius! Pois nós partimos assim, bruscamente, sem os nossos alforjes, e deixando as tendas adormecidas, como quem foge espavorido?

O erudito homem alçou os seus óculos de ouro que resplandeciam com uma desusada, irresistível intelectualidade. Uma capa branca, que eu nunca lhe vira, envolvia-lhe a douta magreza em pregas graves e puras de toga latina; e lento, esguio, abrindo os braços, disse, com lábios que pareciam clássicos e de mármore:

- D. Raposo! Esta aurora que vai nascer, e em pouco tocar os cimos do Hébron, é a de 15 do mês de Nizam; e não houve em toda a história de Israel, desde que as tribos voltaram da Babilônia, nem haverá, até que Tito venha pôr o último cerco ao templo, um dia mais interessante! Eu preciso estar em Jerusalém para ver, viva e rumorejando, esta página do Evangelho! Vamos pois fazer a santa Páscoa à casa de Gamaliel, que é um amigo de Hilel, e um amigo meu, um conhecedor das letras gregas, patriota forte e membro do Sanedrim. Foi ele que disse: "para te livrares do tormento da dúvida, impõe-te uma autoridade". Portanto, a pé, D. Raposo!

Assim murmurou o meu amigo, ereto e lento. E eu, submissamente, como perante um mandamento celeste, comecei a enfiar em silêncio as minhas grossas botas de montar. Depois, apenas me agasalhei no albornoz, ele empurrou-me com impaciência para fora da tenda, sem mesmo me deixar recolher o relógio e a faca sevilhana, que todas as noites, cauteloso, eu guardava debaixo do travesseiro. A luz da vela esmorecia, fumarenta e vermelha...

Devia ser meia-noite. Dous cães ladravam ao longe, surdamente, como entre frondosos muros de quintas. O ar macio e ermo cheirava a rosas de vergel e à flor da laranjeira. O céu de Israel faiscava com desacostumado esplendor; e em cima do Monte Nebo, um belo astro mais branco, de uma refulgência divina, olhava para mim, palpitando ansiosamente, como se procurasse, cativo na sua mudez, dizer um segredo à minha alma!

A Relíquia - Eça de QueirósOnde histórias criam vida. Descubra agora