Capítulo 5

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Ao outro dia, que fora um radioso domingo, levantamos de Jericó as nossas tendas; e caminhando com o sol para ocidente, pelo Vale de Querite, começamos a romagem de Galiléia.

Mas ou fosse que a consoladora fonte da admiração houvesse secado dentro em mim, ou que a minha alma, arrebatada um momento aos cimos da história e batida aí por ásperas rajadas de amoção, não se pudesse já aprazer nestes quietos e ermos caminhos da Síria - senti sempre indiferença e cansaço, do país de Efraim ao país de Zebelon.

Quando nessa noite acampamos em Betel, vinha a lua cheia saindo por trás dos montes negros de Gileade... O festivo Pote mostrou-me logo o chão sagrado em que Jacó, pastor de Bersabé, tendo adormecido sobre uma rocha, vira uma escada que faiscava, fincada a seus pés e arrimada às estrelas, por onde ascendiam e baixavam, entre terra e céu, anjos calados, com as asas fechadas... Eu bocejei formidavelmente e rosnei: - "Tem seu chic!..."

E assim rosnando e bocejando atravessei a terra dos prodígios. A graça dos vales foi-me tão fastidiosa como a santidade das ruínas. No poço de Jacó, sentado nas mesmas pedras em que Jesus, cansado como eu da calma destas estradas e como eu bebendo do cântaro de uma samaritana, ensinara a nova e pura maneira de adorar; nas encostas do Carmelo, numa cela de mosteiro, ouvindo de noite ramalhar os cedros que abrigaram Elias, e gemerem embaixo as ondas, vassalas de Hirão, Rei de Tiro; galopando com o albornoz ao vento pela planície de Esdrelon; remando docemente no Lago de Genesaré, coberto de silêncio e de luz - sempre o tédio marchou a meu lado como companheiro fiel, que a cada passo me apertava ao seu peito mole, debaixo do seu manto pardo...

Às vezes, porém, uma saudade fina e gostosa, vinda do remoto passado, levantava de leve a minha alma, como uma aragem lenta faz a uma cortina muito pesada... E então, fumando diante das tendas, trotando pelo leito seco das torrentes, eu revia, com deleite, pedaços soltos dessa Antigüidade que me apaixonara: a terma romana, onde uma criatura maravilhosa de mitra amarela se ofertava, lasciva e pontifical; o formoso Manassés, levando a mão à espada cheia de pedrarias; mercadores, no templo, desdobrando os brocados de Babilônia; a sentença do Rabi com um traço vermelho, num pilar de pedra, à porta Judiciária; ruas iluminadas, gregos dançando a calabida... E era logo um desejo angustioso de remergulhar nesse mundo irrecuperável. Cousa risível! Eu, Raposo e bacharel, no farto gozo de todos os confortos da civilização - tinha saudade dessa bárbara Jerusalém, que habitara num dia do mês de Nizam sendo Pôncio Pilatos procurador da Judéia!

Depois estas memórias esmoreciam, como fogos a que falta a lenha. Na minha alma só restavam cinzas - e, diante das ruínas do Monte Ebal, ou sob os pomares que perfumam Siquém, a levítica, recomeçava a bocejar.

Quando chegamos a Nazaré, que aparece na desolação da Palestina como um ramalhete pousado na pedra de uma sepultura - nem me interessaram as lindas judias, por quem se banhou de ternura o coração de Santo Antonino. Com a sua cântara vermelha ao ombro, elas subiam por entre os sicômoros à fonte onde Maria, mãe de Jesus, ia todas as tardes, cantando como estas e como estas vestida de branco... O jucundo Pote, torcendo os bigodes, murmurava-lhes madrigais; elas sorriam, baixando as pestanas pesadas e meigas. Era diante desta suave modéstia que Santo Antonino, apoiado ao seu bordão, sacudindo a sua longa barba, suspirava: "Oh virtudes claras, herdadas de Maria cheia de graça!" Eu, por mim, rosnava secamente: "lambisgóias"!

A Relíquia - Eça de QueirósOnde histórias criam vida. Descubra agora