A Essência Treme

69 10 61
                                    

O bom uso da razão reside na incompreensão do mundo.

| | |

O rosto de Anderson sangrava, ainda estampado num horror anormal. A frente do carro estava destruída e, devido à batida, lançara minúsculos cacos de vidros no interior. Erik já saía do veículo, indo de encontro a porta desfiguradamente amassada ao meu lado. Puxou a maçaneta, sem sucesso.

— Vocês terão de sair pelos fundos! — Ele me cutucou, exasperado. — Ellen? Tá me ouvindo?

— Sim! — Retirei o cinto de segurança. Anderson respirava pesadamente ao meu lado, com os olhos fechados. Pus a mão em seu ombro. — Vamos? Está passando?

— Aos poucos... — As pálpebras dele estavam intensamente apertadas uma com a outra, e um corte marcava o lado direito do seu rosto. Segurava com força o volante, a cor dos seus dedos transfigurando-se de branco. — Vá primeiro, Ellen.

Era complicado para mim ter que encarar tudo com praticidade extrema, então respirei um pouco antes de continuar. Passei no vão entre os dois bancos frontais e pulei para os três últimos. Erik me puxou para fora e entrou para ajudar Anderson.

O carro fumegava, com o para-choque atravessado ao meio pelo poste de metal. Erik saiu com Anderson apoiado em seu braço, que já retomava suas feições normais.

— Você foi ótimo, Anderson! — Erik falava, sem parar um segundo. Fazia minha cabeça latejar. Como ele consegue ter tanta animação? — E essa batida, meu amigo... foi animal!

— Sim, você alimentou o monstro com o banquete perfeito.

Pensei que Erik interpretaria minha fala como uma ofensa, mas ele somente soltou um sorriso matreiro para mim.

Segurei meu braço, sentindo um caco de vidro posto de maneira brutal nele. Arranquei-o, grunhindo entre os dentes. Um filete de sangue escorreu pela linha fina do corte, respingando de rubro o asfalto sujo.

— O seu braço... — Anderson indicou, preocupado. Erik fazia menção de se aproximar, mas fiz um sinal com a mão.

— Está tudo bem. — Rasguei a manga da minha jaqueta esverdeada e a enrolei no ferimento. Não doía. — Poderia ter acelerado menos, hein? — Anderson mexeu os lábios, curvando-os, o corte invadindo a linha de seu sorriso. — Você conseguiu.

— Acha que dá pra continuar? — me perguntou Erik.

— Claro. Ainda estamos vivos, certo?

Os dois esperaram meu sinal. Era minha vez.

— Bem, felizmente o observatório fica próximo daqui... — comentei, indicando a direção leste, oposta à bola de fogo iminente na outra linha do horizonte.

Caminhamos pela calçada vazia. Segurei meu braço dormente e machucado próximo do peito. Erik e Anderson vinham atrás, conversando algum assunto sobre esportes radicais de modo empolgante.

Era estranho admitir isso, mas Erik tinha uma simpatia invejável, mesmo tendo aquele seu vício em adrenalina. Ele conseguia conduzir as pessoas com muita facilidade, quase um oposto do jeito empático-travado de Anderson. Devia ser por isso que os dois se davam tão bem, na maioria das vezes.

A praça principal estava amontoada de árvores tombadas sobre os bancos, revestindo o chão como um enorme tapete verde natural. Passamos por alguns corpos destituídos de suas feições e de membros inteiramente esmagados sob alguns carros capotados. Desviei o olhar no mesmo instante.

Já chega. Vi o suficiente.

Por fim, avistei o observatório da cidade.

Os portões metálicos estavam trespassados por fitas amarelas de proibição a continuar. Anderson relutou um instante, na ideia de arrombar uma das janelas, mas acabei convencendo ele. Alguns cacos de vidro levantaram uma poeira do chão ao caírem para dentro.

TREMOROnde histórias criam vida. Descubra agora