Presente

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6 de setembro de 2016

Ele se senta no chão, apoiando as costas na mureta do telhado do prédio. As bolhas nos pés estão o matando, por isso tira as botas. Não consegue se lembrar da última vez que as tirou; dormia com elas, estava sempre pronto para correr. Ele tenta recuperar o fôlego enquanto limpa o suor e o sangue da testa. Não sabe o que fazer, está tão amedrontado que não consegue pensar direito. O medo faz parte de sua rotina há alguns anos, e foi ele que o manteve vivo por todo este tempo, mas dessa vez é diferente.

Apoia na mureta, olha a rua e vê um homem grisalho. Homem? Está certo chamá-lo assim? Algumas pessoas bateriam nele se o ouvissem chamando aquela coisa de homem. Então, o que realmente é? Como deve chamá-lo? Qual sua classificação? Algo ou alguém? Aquilo ou ele? Não sabe dizer. Ninguém nunca soube e jamais saberá. O grisalho já foi chamado de muita coisa durante toda a sua existência: pai, marido, amigo, colega, senhor, doutor, cara, moço, velho, moleque, idiota, filho da puta, desgraçado, infeliz, bobo, amor, querido, homem, ele... Agora era chamado por outros nomes — não especificamente ele, mas todos iguais a ele: zumbi, doente, coisa, walker — como nos seriados de TV norte-americana –, coisa feia, bicho, bicho feio, infectado, morto-vivo...

Morto-vivo...

As imagens pulam em sua cabeça, mostrando o resto de alegria que ele ainda é capaz de lembrar.

Do alto do prédio, ele sorri.

5 de janeiro de 1990

Ele tem 10 anos. Seu pai está fazendo um buraco na areia para fixar o guarda-sol, a irmã já está empurrando a bicicleta para a ciclovia, enquanto sua mãe passa protetor solar em suas costas. Ele se sente uma criança idiota vestindo aquela bermuda azul, coberta por pequenos carrinhos vermelhos. Se parece com uma daquelas crianças mimadas que se jogam no chão quando os pais não compram o doce que querem. Ele não é uma dessas crianças, já é um rapaz responsável que não precisa dar chiliques... Tá bem, houve algumas ocasiões em que isso realmente ocorreu, mas não era um hábito, só fazia este tipo de coisa quando os pais realmente não conseguiam entender a importância de comprar aquela revista que vinha com partes de um carro para montar e que no final ficaria muito maneiro.

Ele está ansioso para que a mãe acabe e ele possa sair para brincar debaixo do sol. A mãe o vira para passar o protetor solar no rosto. Impaciente, ele pede para deixá-lo passar sozinho. Ela aperta a bisnaga em suas mãos. Ele esfrega a mão no rosto rapidamente e sai correndo pela areia quente. No nariz há uma mancha branca de protetor mal espalhado. A mãe grita e agita um boné azul e amarelo, ordenando que ele volte e vista o boné. Mas não há nada no mundo que fará com que ele saia andando pela praia com aquela coisa feia. Já basta a bermuda de criança. O que passava pela cabeça da mãe dele que a fazia acreditar que ele precisava se vestir como um bebê grandão? Era sempre a mesma coisa: "Vista o casaquinho, querido", "Não fique muito tempo no sol", "Não ande pela casa descalço". Não obedeceria hoje, se divertiria como nunca se divertira antes. Seria uma criança livre na praia.

Correu até um monte de pedras que começava na areia e ia para o mar até um ponto em que até mesmo o pai perderia o chão e seria obrigado a nadar. Escalou as pedras escorregadias com cuidado — queria ser uma criança livre, não morta. Soube dizer exatamente até onde a maré chegava, pois as pedras abaixo ainda tinham um pouco da água salgada do mar em alguns sucos das rochas, mas agora seus pés estavam pisando em áreas extremamente secas e ásperas como lixas, quase machucando seus pés. Não é uma grande escalada, mas ele se sente no topo do mundo quando chega lá em cima. Pode ver a mãe o observando sob o guarda-sol, enquanto o pai abre uma das cadeiras e tira uma lata de cerveja do isopor. É um lugar bom, em que pode ver tudo que acontece na praia. Lá em cima, ele acredita que é tudo muito mais tranquilo do que embaixo, onde famílias e ambulantes logo estariam gritando o tempo inteiro.

Algo chama sua atenção do outro lado de sua pequena montanha de pedra. São dois homens, parados e olhando para o chão. Estão de costas para ele. Um deles está vestindo vermelho e nas costas está escrito em branco SALVA VIDAS. A curiosidade o faz descer da rocha. A mãe não será mais capaz de vê-lo e ficará preocupada, mas ele não liga. Hoje é uma criança livre e por isso fará o que bem quiser, principalmente quando sente que há alguma coisa interessante para ver. Ele corre na direção dos dois homens que olham para a areia, para no meio deles e olha para o chão também. Ele não sabe o que é, parece uma gelatina com um monte de fios esquisitos. Ele pergunta o que é. O salva-vidas diz que é uma água-viva. Ele percebe que ela não se mexe e pergunta se está morta. O salva-vidas diz que ela não respira fora d'água e o deixa concluir o pensamento sozinho. O homem ao lado tira o cigarro da boca, sorri e diz: "Água-viva morta". Os dois homens riram. Ele demora para entender e não sente muita vontade de rir enquanto há um animal tão diferente e interessante morto logo à frente de seus pés, mas acaba cedendo e ri da piada só para parecer simpático.

Água-viva morta.

Viva morta...

EleOnde histórias criam vida. Descubra agora