Do alto do prédio ele chora.
As lágrimas correm de seus olhos até seu queixo, limpando um pouco a poeira que há no rosto, mas ele tenta sorrir enquanto pode. Ele precisa relaxar, mas a dor dificulta. Ele pressiona a ferida no braço para ter a falsa impressão de alívio. Enquanto faz isso ele olha para a ponta dos dedos amarelados, que combinam com os seus dentes também amarelos, os quais tinham encontros frequentes com cigarros. Um cigarro o deixaria bem relaxado. Não há problema quanto a isso, Samuel deve ter um maço em seu bolso.
Ele olha para o lado direito, onde o amigo está deitado, e enfia a mão no bolso da camisa de Samuel. Samuel não se importa, nem poderia se importar, o machado de bombeiro cravado em sua cabeça o impossibilita de sentir qualquer coisa. Com a mão esquerda suja de sangue, ele leva o cigarro até a boca e torce para que o isqueiro vagabundo que saqueara em uma loja de conveniências abandonada ainda funcione. Funciona. E logo a fumaça lhe cobre a visão. Ele se lembra da vez em que ele e seu grupo — que ainda estava inteiro — conseguiram entrar naquela loja. Eles tinham caminhado uns 10 km naquele dia, os braços estavam exaustos com o movimento repetitivo de cravar o machado nos crânios e puxar o machado de volta. Quando encontraram aquela caixa de cigarros escondida debaixo do balcão com um fundo falso, quase gritaram de alegria e depois apreciaram o gosto do mundo antigo.
Assim como fizera naquele dia, ele aprecia cada trago, lembrando-se de outros momentos em que o cigarro o acompanhava, como na noite em que conheceu a garota que se tornaria sua esposa; seu primeiro dia na empresa; o enterro de seu pai, da avó, do avô; o dia em que os Mamonas Assassinas morreram, quando a relação entre ele e seus amigos de tabaco começou.
Ele sorri.
2 de março de 1996
Ele coloca os pães e os frios sobre o balcão e paga por eles. Imita a mãe e finge que esqueceu de algo, levando a mão à testa com um sorriso. Ele aponta para a porta de vidro atrás da balconista e pede pelos cigarros. Ela olha para a cara dele enquanto ele tira as moedas de 50 centavos e notas de um real do bolso, troco que guardou de outros dias. Ela diz que não pode vender cigarros para menores, ele insiste por um tempo, mas desiste quando ela pede para ver o RG dele.
Do lado de fora, ele tenta convencer vários adultos a comprar cigarros para o pai dele. Ninguém cai na conversa, mas acaba encontrando alguém. Bernardo, um amigo da escola que repetira o segundo e o terceiro ano do ensino médio. Ele provoca certo medo nele. Bernardo é um garoto grande demais para sua idade, mas não é a força que o assusta, e sim as histórias sobre ele, as que dizem que ele costumava ser um bom aluno com notas razoáveis, mas que logo depois que o irmão saiu da cadeia, ele passou a se envolver com drogas, e depois parecia estar fazendo algo a mais com elas além de usá-las. Ele explica o problema para Bernardo e pede para que ele entre e compre os cigarros. Bernardo não vê problema, entra na padaria e compra os cigarros. Quando volta com os cigarros ele pede por dinheiro em troca do favor. Ele tira algumas moedas restantes do bolso e as entrega. Bernardo diz que sabe onde conseguir um mais barato e melhor. Ele agradece e vê Bernardo continuar seu caminho, assustado.
Ele balança a cabeça para espantar o medo e volta para casa, deixa a sacola com as compras em cima da mesa e procura pela mãe. Ela está dormindo no sofá com a TV ainda ligada. Ele abre o armário cuidadosamente, tentando não fazer barulho, pega a caixa de fósforos e corre para o quintal na ponta dos pés. Ele se senta na banqueta, pega um dos cigarros e o põe na boca. O fósforo risca a parte áspera da caixa e ele o leva até a ponta do cigarro, cobrindo a chama com a mão esquerda, igual ao pai. O primeiro trago é horrível e ele começa tossir, cobre a boca com a blusa para abafar o som e não acordar a mãe. Ele continua a fumar, afinal, se seu pai faz isso há tantos anos é porque deve existir algo bom sobre isso. Ele está pronto para mais um trago. O cigarro vai à boca e a porta se abre.
O tapa forte em sua boca tira o cigarro de seus lábios. A mãe grita coisas que ele mal consegue entender. Ele cai do banco e ela lhe enche de tapas por todo o corpo, xingando-o e dizendo que não pode acreditar no que vê. Ela para e exige que ele entregue o maço. Assustado, ele a obedece. Ela recolhe o cigarro que caíra no chão. Antes de fechar a porta, ela grita algo em tom furioso: "Se começar a fumar, você vai morrer logo".
Morrer logo...
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Ele
General FictionAlgo ou alguém? Aquilo ou ele? Levado ao limite entre a vida e a morte, ele questiona suas atitudes, pensamentos e tudo que o levou até aquele momento.