Do alto do prédio, ele sorri.
O morto grisalho continua andando pela rua. Ele repara que o morto-vivo está vestindo um jaleco branco, sujo de sangue escuro nas mangas e com um cartão de identificação preso ao bolso do peito. Ele se lembra de como aquela imagem era comum quando a epidemia começou. Médicos, enfermeiras e moradores de rua, as três imagens mais comuns antes do terror atingir a todos os tipos de pessoas. Ele se lembra de como eram os médicos, e logo se lembra do período que passou no hospital e fez um amigo que nunca voltou a ver.
Ele sorri.
4 de junho de 2006
Ele está deitado na cama do hospital, sentindo um leve incômodo na lombar. Ele está olhando para a coisa nojenta que o pai decidiu deixar em cima do criado-mudo ao seu lado e fica imaginando como aquela pedra gigantesca pôde ficar dentro de seu rim por tanto tempo. Ele ouve uma tosse, mas não se importa, até perceber que não é uma tosse, e sim alguém o chamando.
O senhor ao lado está inclinado na cama com um sorriso cheio de dentes branquíssimos. O velho pergunta se é a primeira cirurgia dele, ele confirma e diz que removeu uma pedra no rim. O senhor de pele escura diz que ele não precisa se preocupar, pois ele mesmo já passou por diversas cirurgias que sempre tiveram bons resultados. Também diz que ele deveria estar feliz, já que removera a pedra no caminho. Ele sorri, o velho gargalha. Ele se lembra de uma enfermeira o chamando de Seu Olavo. Olavo tosse um pouco e se cala, deitando na cama. A boca dele abre de novo e diz que pior que uma pedra no sapato é uma pedra no rim. Desta vez ele ri junto com Olavo.
O tempo passa e as risadas param. Há apenas o som da televisão no quarto e o jornalista diz que houve um ganhador do prêmio de quarenta e seis milhões e trezentos mil reais. Seu Olavo diz que jogou na loteria para ganhar aquele dinheiro e lamenta por não ter ganhado. Há silêncio e, segundos depois, Olavo diz que não saberia o que fazer com trezentos mil. Quarenta e seis milhões já eram o suficiente. Eles riem até a barriga doer.
A família de Seu Olavo aparece para vê-lo. As duas meninas correm até a cama e ele as beija carinhosamente na testa, a menor faz a mesma coisa e dá dois tapinhas na careca do avô. A senhora entra pouco depois com um sorriso forçado e triste. Ela se aproxima lentamente, pergunta como ele está se sentindo. "Em pedaços", ele responde, enquanto mostra os pontos na barriga. A menina maior ri e a menor faz cara de nojo, Olavo ri da cara enjoada dela. Após trocarem algumas palavras a mais, a senhora finalmente começa a chorar, agarra a mão de Olavo, aproxima-a de seu rosto e pergunta se desta vez ele parará de beber. Com um sorriso mais envergonhado do que alegre, Olavo diz que nunca mais sentiria o cheiro do álcool. A senhora e as meninas se despedem e andam até a porta. Olavo pergunta para uma das meninas por que o pai delas não veio. A senhora é quem responde, dizendo que o hospital permite apenas três pessoas por visita e que o seu filho logo viria ao quarto. O tempo passa e Olavo deixa as lágrimas escorrerem pelo rosto ao perceber que o filho jamais virá. Ele é obrigado a virar o rosto para não chorar junto com o velho.
Ele está vestindo as roupas para ir embora do hospital e deseja melhoras a Seu Olavo. O velho agradece e olha sério para ele, perdendo o ar alegre natural de seu rosto e transformando-se em triste e preocupado. Olavo diz, apontando o indicador para o rosto dele, que não quer vê-lo no hospital novamente. Diz que o jovem não deve fazer a mesma coisa que ele e viver uma vida sem cuidados, orgulho e vergonha. Confessa que boa parte das cirurgias pelas quais já passou foram mais complicadas por que ele teve vergonha de dizer que estava com um problema, que o orgulho não permitia que ele admitisse ser incapaz de cuidar de alguns de seus próprios problemas. O senhor repete que não quer vê-lo no hospital, recuperando-se de uma cirurgia, nunca mais. Diz que a maioria das cirurgias é feita em casos extremos e que casos extremos podem ser facilmente evitados caso ele não seja orgulhoso e vá ao médico assim que perceber algo estranho.
"Cuide-se, garoto. Muita gente morre por descuido".
Por descuido...
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Ele
Ficción GeneralAlgo ou alguém? Aquilo ou ele? Levado ao limite entre a vida e a morte, ele questiona suas atitudes, pensamentos e tudo que o levou até aquele momento.