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Todas as noites antes de dormir, eu costumava preparar uma xícara de chá. O fazia bem quente e deixava o líquido parado ao meu lado para amornar enquanto lia por alguns minutos.

Eu simplesmente amo ler, mas com a correria do meu dia nunca me sobrava muito tempo para isso. Então, reservei esse curto horário entre o jantar e a hora de dormir exclusivamente para me perder na leitura tomando um chá quentinho.

Depois de dois capítulos excessivamente longos, a temperatura de meu chá ter ficado perfeita e um silêncio agradável ter se instalado na minha cozinha, ontem à noite os únicos ruídos que podiam ser ouvidos eram o virar de páginas do livro à minha frente, minha respiração baixa e o suave bater da xícara de porcelana no pires.

Me senti feliz em tomar aquele chá, já que meu estômago tinha resolvido protestar e doía fazia alguns dias, causando um mal-estar tremendo.

Minha barriga doía, mas minha falecida avó sempre me dizia que nada como uma bom chá quentinho para ajudar como resfriados, então ali estávamos nós: culpando uma possível gastrite e tomando chá.

Quando iniciava um novo capítulo, ergui os olhos no livro na intensão de sorver mais um gole do chá e me sobressaltei com o que vi refletido na janela da cozinha.

Por um momento, pensei que estivesse sonhando. Talvez eu tivesse pegado no sono enquanto lia e minha imaginação fazia uma peça no mundo dos meus sonhos.

Vi meu reflexo à mesa, o livro aberto à minha frente e a xícara ainda em uma das mãos.

Atrás de mim, quase que apoiado por sobre meus ombros, um borrão cinza e branco, parado, olhando por cima de meu ombro em direção ao livro.

Parecia estar absorto com a leitura, uma das mãos sobre um de meus ombros, escorando seu queixo em uma posição de descanso.

Pareceu perceber que eu parara de virar as páginas e ergueu seu olhar para a xícara por um instante, olhando então para o meu rosto, meus olhos arregalados e fixos na janela, a boca meio aberta expressando minha surpresa.

Encarou-me de volta e sorriu.

- Olá.

Sua voz saiu baixa e clara em meu ouvido e senti minhas mãos tremerem, um desconforto me subindo pela garganta.

- Hã... Oi.

Minha resposta nervosa saiu baixa e patética até mesmo para mim, mas meu estado era de pavor. O fantasma do reflexo ainda sorria e me observava com seus olhos luminosos.

Pensei que talvez eu estivesse mesmo enlouquecendo. Será que eu estava começando a ver coisas?

Ou minha carga de trabalho talvez fosse mais pesada do que tivesse imaginado a princípio...

- Oh, não se engane! - murmurou ele com um curto riso - Você não está enlouquecendo não.

Arregalei ainda mais meus olhos e inspirei rapidamente.

Sem querer talvez eu tenha expressando meus pensamentos em voz alta.

Mas se eu não estava enlouquecendo, o que estava acontecendo comigo para começar a ver coisas? E pior: a ouvi-las?

Ele continuou:

- Me desculpe, sei que passa de seu horário habitual, mas você tem café?

Me surpreendi com sua pergunta. Café?

Com as mãos ainda tremendo drasticamente, consegui apontar em direção ao pequeno armarinho branco no canto da cozinha.

Engoli em seco. Minha voz saiu rasgando na garganta seca.

- Ali. Dentro do saquinho amarelo.

O zelador daquele prédio trouxera para mim ainda na semana passada, quando eu chegava de mudança.

Havia tomado uma xícara dele durante o jantar naquela mesma noite, e também em alguns dos cafés da manhã e jantares desde que fora trazido, mas ele tinha um gosto meio estranho.

Ele me encarou durante alguns segundos e suspirou. Meu estômago já começava a dar voltas, não sei se pelo nervosismo ou pelo possível resfriado.

- Mas não há café ali. Só um bom e potente veneno para ratos.

Paralisei por alguns instantes.

- Veneno? Mas...

Senti náuseas me invadindo naquele momento e em minha visão apareceram pontos escuros.

A xícara parada na borda da mesa se espatifou em cacos brancos quando caiu de minhas mãos, indo ao chão.

Eu não conseguia pensar direito.

"Aquilo... Era veneno?", lembro de ter pensado.

Senti meu corpo tremer em um espasmo e desabar da cadeira, sem controle. O livro sobre meu colo caiu aberto aos meus pés em uma passagem qualquer da história.

Senti meu coração palpitando rapidamente no peito, muito acelerado.

Naquela mesma tarde senti palpitações, mas não dei atenção - minha agitação era normal em alguns dias no trabalho.

Mas naquele momento estava mais rápido. Muito mais. Como se o coração fosse saltar do peito.

Respirei fundo, contei alguns números. Achei que já estivesse melhor e tentei me erguer do chão.

O borrão cinza e branco do fantasma me era visível de onde eu estava, uma expressão de pena marcava o seu rosto, uma das mãos meio estendida em minha direção num gesto de ajuda.

Todo o meu corpo se contraiu novamente e tudo o que estava em meu estômago foi parar no piso branco da cozinha.

Minha visão se turvou novamente, a saliva escorrendo pelo canto da boca, e eu apaguei ali, sobre o piso gelado da cozinha.

Acordei me sentindo muito mais leve minutos depois. Não havia mais tremores, não sentia nada além de um vazio inexplicável.

Ao meu lado, podia ver o fantasma, agora mais claramente, sorrindo para mim.

Travei onde estava ao ver a luminosidade em seus olhos. Parecia... pena?

Ele estendeu a mão.

- Eu te dou as boas-vindas.

Sei que posso parecer meio fora da casinha ou dar a leve impressão de que tenha batido com a cabeça em algum lugar, mas fantasmas existem.

E agora eu sei.

Acredito porque, quando eu olhei para baixo ontem à noite, eu vi.

Fantasmas existem, e eu sou um deles.

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