II

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O zelador do prédio entrou sorrateiro no pequeno apartamento pela manhã.

O corpo jazia frio tombado sobre o piso branco, a cadeira encurralada contra a parede e o caos de cacos de porcelana branca espalhada no chão ao lado de um livro caído.

Algumas das páginas pareciam ter se soltado, mas ele não fazia ideia se por descuidos daquele que o lia ou pela idade do objeto.

Um meio sorriso dançou em seus lábios.

Luvas grossas de jardinagem lhe protegiam as mãos quando ele se agachou e recolheu o livro.

O título lhe era desconhecido; ele não lia muito, pelo menos não livros daquele tipo. Mas aquele seria o seu troféu. Uma lembrancinha no meio de tantas outras que já acumulara.

Tirou um saco plástico verde do bolso oculto dentro de seu uniforme e foi até o armarinho branco no canto da cozinha, ainda com o livro nas mãos.

Fora ali que ele vira ser guardado o pacote no outro dia. Tivera todo o cuidado de fechar o pacote de café corretamente antes de entregá-lo para não ser alvo de desconfiança.

Pegou o pacote aberto e o colocou no saco plástico com cuidado. Qualquer mínimo detalhe fora do lugar poderia pôr tudo em perigo.

O zelador caminhou numa das linhas tortas do piso da cozinha e ficou de frente para o corpo tombado no chão.

Uma câmera fotográfica minúscula foi cuidadosamente tirada de seu bolso, o flash disparado algumas vezes, iluminando o ambiente.

Fotografias tiradas, a câmera enfiada no bolso, o zelador observou o corredor e então saiu silenciosamente do pequeno apartamento alugado, retirando a chave da porta sem fazer barulho - uma habilidade adquirida nos seus vários anos de prática.

Desceu as escadas e entrou no quartinho que lhe pertencia naquele lugar.

Não que ele não tivesse outra moradia fora do prédio - longe disso! A melhor casa do bairro mais rico da cidade era sua. Mas ele gostava desse prédio, gostava do que fazia. Amava a ingenuidade de alguns que lhe confiavam atividades simples, como comprar um pacote de café no mercado da esquina.

O livro e o pacote de café envolto pela sacola plástica foram guardados cuidadosamente debaixo de uma tábua solta havia muito tempo no chão de madeira.

Retirou as luvas de jardinagem e as colocou debaixo do colchão, bebeu água e se alongou, prestes a sair para a sua atuação.

O zelador fez tilintarem as suas chaves quando saía de seu quarto assobiando alegremente, como se fosse um dia como qualquer outro.

Ele sabia que era costume da recente vítima sair para o trabalho bem cedo, muito antes daquele horário, e encenou sua máscara de zelador amigável e preocupado quando foi até a recepção perguntar por ela.

Mesmo escondendo sua imensa satisfação ao receber uma resposta negativa, continuou a farsa e avisou que daria uma olhada, subindo as escadas e tilintando suas chaves pelo caminho.

Bateu à porta, esperou alguns segundos e chamou pelo nome que a pessoa lhe dissera há algum tempo, esperando o silêncio.

Deschaveou a porta e entrou; formulou uma exclamação de espanto e foi até a vitima, sacundindo o corpo como se tentasse voltá-lo à consciência de um sono profundo.

Suas exclamações pareceram surtir efeito; moradores de alguns apartamentos próximos pareceram se agitar por trás de suas portas.

O zelador ergueu-se e desceu as escadas novamente, a expressão preocupada ainda mascarava sua verdadeira face quando relatou que algo estava estranho para a mocinha da recepção, causando alvoroço entre os funcionários.

Foram alguns para o apartamento com ele, outros voltaram ao que faziam esperando notícias e a recepcionista ligou para a ambulância.

Os que subiram com o zelador ficaram bastante agitados, principalmente com o fato dele ter visto aquilo primeiro. "O pobre já não está em idade pra essas coisas, coitado!".

Nem imaginavam!

Mas ele seguiu com seu teatro. Mesmo que o pedido lhe tenha sido negado por duas vezes, pediu para que pudesse ficar ali até a ambulância chegar, o que foi contrariado quando lhe disseram que seria melhor que ficasse na porta da frente do prédio esperando por ela.

Esperou. Minutos depois, o veículo branco e vermelho parou em frente ao prédio. Dois homens e uma mulher desembarcaram e seguiram o zelador escadas acima.

Por alguns instantes ele imaginou como seria empurrar aquela mulher magra e de aparência frágil pelas escadas abaixo; se talvez desse para ouvir o estalido da coluna dela quando partisse a espinha nos degraus.

Mas aquilo seria muito arriscado, e ele ainda tinha um personagem para interpretar.

Levaram o corpo até o veículo e logo saíram. Cumprido o que precisava fazer, o zelador buscou os troféus em seu quartinho e se despediu, caminhando tranquilamente até sua rica casa.

Ele a alugava para uma moça tímida e sua pequena filhinha de 4 anos, mas tinha passe livre por lá quando quisesse.

Entrando na casa, o homem desceu alegre até um porão. Seu covil ostentava diversos troféus como aqueles que trazia à sua coleção, tipos, cores e formas diferentes, mas com um propósito obscuro no mínimo parecido.

A entrada do covil estava muito bem escondida debaixo da cama da menininha, que jazia muito bem arrumada, porém vazia.

Ele sorriu.

Ao menos para aquela garotinha, havia mesmo um monstro vivendo debaixo da cama, à espera.

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