Solteirona. Tia. Celibatária. Ingrid Beauchamp sabia o que as pessoas pensavam dela; ela já observara a maneira com que elas se amontoavam e cochichavam com as mãos em concha enquanto ela passava pela biblioteca, devolvendo livros nas devidas prateleiras. Na década em que ela trabalhou ali, Ingrid fizera poucos amigos entre os frequentadores, que a achavam severa e com pulso forte. Não só ela nunca perdoava uma multa, como tinha a tendência de dar um sermão sobre cuidado e manutenção adequados para os livros sob sua responsabilidade. Um livro devolvido com a lombada rompida, uma capa molhada ou páginas com orelhas, e a pessoa podia ter certeza de que receberia uma bela reprimenda. Já era bem ruim que o orçamento operacional mal cobrisse as despesas, Ingrid não precisava que frequentadores provocassem danos desnecessários nos livros sob seus cuidados. Claro que Hudson deveria fazer o trabalho chato, mas embora Ingrid fosse arquivista graduada, ela curtia os aspectos físicos do serviço e não gostava de ficar atrás da mesa o dia todo, colocando as plantas sob o vapor. Ela gostava da sensação e do peso dos livros — de passar as mãos nas páginas amaciadas pelo uso, ou de colocar uma sobrecapa no seu devido lugar. Isso também lhe dava oportunidade de policiar a biblioteca, acordar qualquer vagabundo que sorrateiramente tirava uma soneca pelos cantos e verificar que não houvesse adolescentes se bolinando por entre as pilhas. Bolinar era uma palavra tão estranha. Não que ninguém mais bolinasse. A maioria dos adolescentes avançava muito além. Ingrid gostava dos garotos: adolescentes que visitavam a biblioteca e bradavam pelos últimos lançamentos distópicos pós-apocalípticos a faziam sorrir. Ela não se importava com o que faziam no conforto ou desconforto de seus próprios lares ou carros sujos. Contra a crença popular, ela sabia o que era ser jovem, estar apaixonada e ser destemida: afinal de contas, ela morava com Freya. Mas uma biblioteca não era um quarto ou um motel; era local de leitura, de estudos, lugar de silêncio. Quando os garotos tentavam obedecer à última regra, o som de respiração pesada era o barulho mais alto de todos.
Em qualquer ocasião, a bolinação não estava limitada apenas aos garotos. Outro dia, Ingrid teve que tossir algumas vezes para que um casal de meia-idade se desgrudasse com sucesso até a hora em que ela passaria com o carrinho pelas fileiras. A Biblioteca Pública de North Hampton ficava localizada em um quadrilátero gramado do outro lado da Prefeitura e perto de um parque e playground comunitário; ela era limpa, organizada e bem mantida conforme os fundos magros permitiam. O orçamento da cidade havia encolhido junto com o resto da economia, mas Ingrid fazia o máximo para manter o estoque com livros novos. Ela adorava tudo na biblioteca, e se alguma vez ela gostaria de ter tido a sua varinha mágica (não que não a tivesse mais, mas se ela tivesse), seria para colocar tudo em ordem: reformar aquelas almofadas molambentas nos cantos de leitura, substituir os computadores antiquados que ainda brilhavam em monitores pretos e verdes, criar um palco apropriado para contação de histórias com um teatro de marionetes para as criancinhas. Ela ainda podia se consolar com o aroma de tinta dos livros novos, o odor almiscarado e poeirento dos antigos e com o modo como a luz do sol do fim da tarde fluía pelas vidraças das janelas. A biblioteca ficava em local privilegiado diante da praia; a sala de livros de referência tinha uma vista espetacular do mar e, de vez em quando, Ingrid fazia questão de parar perto do pequeno recanto aconchegante apenas para olhar as ondas quebrando na frente da praia. Infelizmente era a mesma vista exuberante que ameaçava a própria existência da biblioteca. Recentemente o prefeito de North Hampton fez comentários não tanto sutis de que a venda da excelente propriedade frente ao mar seria a forma mais fácil de pagar os débitos crescentes da cidade. Ingrid não se opunha ao projeto em si, mas soube que no pensamento do prefeito seria uma ótima ideia acabar com a biblioteca de vez, agora que tantas informações estavam disponíveis on-line. A destruição burocrática de sua preciosa biblioteca era coisa tão lamentável a se considerar que Ingrid tentava não se sentir tão desamparada naquela manhã. Graças a Deus nada de terrível aconteceu na festa de noivado de Freya domingo passado. Lá, por um instante, Ingrid preocupou-se quando um dos arranjos de flores pegou fogo inexplicavelmente, mas um garçom rápido no gatilho abrandou as chamas com uma jarra de chá gelado e não houve danos maiores. O fogo foi obra de Freya, claro, os nervos provocando devastação com sua magia indomada. Dava para entender que Freya estivesse inquieta ao assumir um compromisso dessa magnitude, mas ela costumava mostrar melhor controle, especialmente após séculos de vida sob restrição. Agora, Ingrid estava feliz apenas em voltar ao trabalho e à rotina de sua vida ordinária, encontrando conforto familiar. Não fazia muito tempo, sua vida fora bem diferente quando o trabalho era animado e incomum. Mas isso era passado, e era melhor não ficar lembrando disso. A biblioteca não era apenas o habitual posto suburbano, pelo menos. Depois de sua inauguração, graças a generosas doações de uma grande dama local, ela também abrigava uma das mais requintadas coleções de desenhos arquitetônicos do país, pois muitos projetistas famosos construíram na área. Como arquivista, Ingrid era responsável por preservar a obra para a posteridade, o que significava criar uma tenda
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As Feiticeiras de East End
Детектив / ТриллерDireitos Reservados , propriedade privada da autora melissa de la cruz Família Beuchamp – Livro 01 As três mulheres da família Beauchamp escondem um segredo: são feiticeiras poderosas, há séculos proibidas de usar sua magia. Joanna consegue...