Do outro lado

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Do outro lado

“Nós temos toda uma eternidade para nos vermos de novo.”

(Alameda dos Pesadelos, 2014)

— Para onde está me levando?

Você me olhou com um sorriso misterioso. Eu adorava quando você fazia aquela expressão: era diferente, tinha algo de ousado, de rebelde. E você era sempre tão centrado o tempo inteiro. Tão certinho. Tão educado com meus pais e tão preocupado comigo. Era sempre surpreendente quando você assumia aquele brilho de aventura nos olhos. Era como mergulhar no desconhecido sem medo. Eu sempre confiava em você. Ao seu lado, estava segura. Sempre.

— Para as bordas do céu – você respondeu, rindo, de olho no trânsito da rodovia.

— Biquíni Cavadão? Eu não sabia que você gostava deles.

— Claro que eu gosto. De algumas músicas só, mas gosto.

Deixei uma risada subir pela garganta e flutuar no carro. O sol batia quente no para-brisa, esquentando demais o Chevette, mas nós nem nos importávamos. Rir, suar, passar calor, tudo fazia parte de uma aventura maior. Era um dia intenso de verão cheio de vida e promessas.

— É engraçado, de onde será que eles tiram esses nomes? Quer dizer... “Biquíni Cavadão”?

Fiz aquela minha cara de deboche exagerado que sempre o fazia rir.

— Hum. Hum. Hum. Eu tenho algumas ideias – você tinha novamente aquele brilho aventureiro no olhar. – Você, de biquíni pra mim... pequenininho. Que tal hoje? É um bom dia, não acha? E falando nisso você ainda não me mostrou o que tem debaixo dessa camiseta.

Gargalhei. Havia sim um biquíni, mas eu tinha vergonha de biquínis muito pequenos. Sabia muito bem que o nosso destino era a praia, só não sabia qual. Eu conhecia há anos a rodovia dos Imigrantes, sempre passava por ela com meus pais, então nisso você não conseguiu me enganar nem por um segundo. Eu só não sabia para qual cidade estávamos indo. Você não queria me dizer. Ficava me provocando com isso. Disse para minha mãe que estava me sequestrando pela manhã e ela ficou apavorada. Papai falou para ela deixar de bobagem: você, afinal, era você.

Olhei para a estrada, para que você não visse que eu tinha ficado vermelha. Detestava ficar vermelha. Não acontecia muito, mas acontecia com você. E aí você sempre tirava sarro da minha cara. Dizia que eu parecia uma paquita da Xuxa. Onde já se viu? Nós já estamos em 1995. Esse programa nem existe mais. É apenas uma lembrança da nossa infância.

Engraçado como a nossa vida se transforma em lembranças depois de um tempo, você não acha?

No final, só restam lembranças. O passado que não existe mais, que já foi.

Os vidros do Chevette estavam fechados, por causa da velocidade. O vento fazia um barulhão nas janelas. Olhei para você, queria surpreendê-lo, deixá-lo confuso, e então você me olhou de volta, sem saber o que esperar. Você dizia que eu era imprevisível. Você botava meus pés no chão e eu fazia você flutuar. Abri o vidro e meti a cabeça para fora, que nem cachorro em dia de passeio.

— Maluca! – você gritou, rindo. – Sai daí, sua doida! Ah, se teus pais te veem assim o nosso noivado vai pro brejo!

— Tá brincando? – eu ri, sentindo o vento forte no rosto. Era libertador. Poucas vezes senti tamanha liberdade na vida. Simplesmente não consigo esquecer aquela sensação. – É capaz de eles me deserdarem como filha antes de renegarem você! Queridinho.

Fechei o vidro e nós dois rimos como adolescentes. A gente era quase isso, na verdade. Estávamos naquela passagem nebulosa, aquele momento indefinível que nos transforma em adultos. Quando não se é jovem nem velho. A minha passagem foi difícil. Talvez eu tenha ficado presa ali, entre aqueles dois mundos. Vivendo no passado que é você.

Você não chegou a ficar vermelho, mas estava sem graça. Eu ria muito quando você ficava vermelho, principalmente quando minha mãe o chamava de queridinho. E você ficava mesmo quando ela fazia isso. Parecia o pimentão da propaganda da tevê.

— Doce, doce, a vida é um doce, a vida é mel...

— Bah! – você jogou um pacote vazio de biscoito de polvilho no meu colo. – Só você é paquita!

E nós continuamos viajando. A estrada se estendia como um tapete no horizonte. O céu estava claro, azul, com nuvens branquinhas. Apontei para uma e disse que tinha a forma de um dragão. Você riu e disse que parecia um avião. Um avião em formato de dragão.

Você dizia coisas sem sentido e eu achava graça...

Eu nunca mais vou achar graça em nada. Prometo. 

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Dois Lados, Duas Vidas [Amostra]Where stories live. Discover now