Capitulo 2

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​No caminho até em casa, eu me distraia olhando as gotas da chuva nas vidraças, pensando em tudo o que havia acontecido. Concentrei o pensamento na tentativa de entender por que o meu cérebro me chamava para analisar a questão de eu não me permitir iniciar meus projetos de escrita. Isso sempre acontece nas saídas do consultório. Todas as vezes fico tonta com as sinapses, agora mais rápidas.
​Quando eu era criança, minha mãe julgava muito os meus acontecimentos internos, os meus questionamentos, vontades e certezas. A partir disso, meu cérebro, ainda não era totalmente livre das amarras do passado, fez um link do dia de hoje com o julgamento que minha mãe fazia quando eu era um projeto de humano. Isso ocasionou em um bloqueio mental. Fui refém de mim mesma, não conseguindo expor as minhas ideias. Isso poderia sim estar prejudicando o meu processo criativo. Como sempre fui muito sensível, tendo algumas visões julgadas sobrenaturais pelas pessoas com as quais eu convivia, eu me fechava no meu mundo. Não era fácil ser julgada como louca pelo simples fato de visualizar os pensamentos contidos nas cabeças das pessoas, prever acontecimentos futuros ou realizar conexão com energias que não faziam parte do plano físico.
​Vi-me deitada na cama, sem ânimo pra levantar. Olhava televisão dia e noite e comia muito pouco. Foi um período muito difícil. Tão difícil que tive algumas visões e sentimentos com os quais não soube lidar.
​Numa tentativa de me libertar da "loucura", meus pais decidiram me internar em uma clínica psiquiátrica, no meio de uma reserva florestal. Se não fosse pela quantidade de medicamentos que me deram lá, o lugar seria incrível.
​Era uma casa de repouso para quem via de fora, pois não ficava à mostra o que se passava lá dentro. Para quem chegava, era paz vinda, imediata, das árvores, dos arbustos, das flores e das folhagens que constituíam o pátio da casa verde, com suas esplendidas aberturas marrons. A casa era uma conjunção de chalés e possuía aparência de um castelo. Ainda posso recordar o frio que fazia lá dentro e da sensação de morte que tinham aqueles corredores, vazios de amor.
​Todas as noites eu trilhava aquele lugar. A meta noturna era chegar até o pátio dos fundos, sentar nos bancos de cimento e admirar a fonte com a imagem de Ganesha. O barulho da água se misturava com os sons das folhas que dançavam com o vento. Sempre ventava muito durante a noite. Olhar Ganesha me acalmava mais do que as drogas que me davam para dormir. Elas não faziam efeito, uma vez que o "meu problema" não era psiquiátrico. A minha questão era não saber lidar com a sensibilidade. Ninguém jamais havia me ensinado que eu poderia lidar com ela como alguém lidando com suas ansiedades, por exemplo. A sensibilidade te abre os olhos para outros mundos, enquanto a ansiedade te abre os olhos para um futuro no agora, ou um passado que toma conta do presente de tal maneira que parece mesmo a realidade de um instante. Ambas trabalháveis quando compreendidas e acolhidas.
​Para que algo seja entendido, precisa primeiro ser aceito. Isso não aconteceu comigo. Meus pais nunca souberam lidar com as histórias que eu contava e eu nunca entendi o motivo, já que aquilo era a minha realidade. Eu ficava frustrada, mas nunca deixei de contar a eles sobre o mundo paralelo que eu via e eles não. Eles não tinham esse campo energético visualmente aberto como o meu, nem mesmo sentiam as tensões dos ambientes como eu sentia. Tudo bem, uma criança falar que enxerga seres de outros planetas ou pessoas que já morreram pode soar assustador no primeiro instante, mas de onde eu tiraria tanta informação se não fosse verdade?
​Criatura das mais variadas formas e cores se conectavam comigo. Desde seres luminosos, quando meus dias eram felizes, a seres distorcidos, desconfigurados. Esses medonhos apareciam quando a tristeza me invadia. Engana-se quem pensa que crianças não possuem dias tristes. A tristeza é um sentimento, e por ser um sentimento, faz parte da vida, merecendo ser sentida. O problema está em transbordar para dentro o seu excesso.
​Por ser portadora de uma memória excelente, eu mergulhava com facilidade para dentro da minha mente fluídica, me encharcando de antigas recordações. Lembro-me com clareza de uma luminosidade circular luminosa indescritível aos olhos humanos, que circundava meu corpo. Dentro dessa esfera luminosa, estava eu, e fora dela, as criaturas.
​Quando a tristeza exacerbava a minha psique, a película luminosa circulante, rompia. Vultos assopravam os meus ouvidos. Causavam-me uma sensação enjoante. Raramente eu sentia medo, pois um grupo de seres angélicos conversavam comigo. Instruíam-me a como agir diante dos monstros tortos. Diziam-me para eu fechar os olhos, para que a luz transmutadora de energias dissonantes emergisse da minha cabeça. Ela ultrapassava a minha mente em direção ao meu cenho. A iluminação emitida era de cor roxa. Eu me concentrava para que a coloração expandisse até alcançar quem quer que tivesse invadido o meu espaço. Sempre funcionava, embora algumas assombrações fossem resistentes.
​Passei por um período difícil na infância. Meus pais tinham muitos problemas de relacionamento. Por ser muito sensível, como uma esponja absorvia toda energia eletromagnética negativa emanadas por eles. Passei a sentir dores abdominais muito fortes, não conseguindo emanar devidamente a minha luminosidade curativa contra o mal todo que, naquelas circunstâncias, invadiam meu campo eletrônico.
​Foi em uma noite muito turbulenta na casa dos meus avós onde entrei em estado de surto, não sabendo lidar com uma informação recebida de uma dimensão com a qual me conectei.
​Estávamos todos na sala. Era inverno e as janelas assoviavam. Meus pais e meus avós estavam sentados sobre um tapete cor de vinho, ao redor de um caixote dotado de fotos antigas. Eles pareciam se divertir relembrando aqueles momentos congelados, enquanto eu me divertida correndo pela casa. A escada da cozinha sempre ganhava a minha atenção. Não ela em si, mas a sensação que ela proporcionava quando eu chegava no último degrau, qual dava acesso a um corredor sombrio. O silêncio gritava e eu não precisava fechar os olhos para ver a escuridão, bastava concentrar naquela sensação. Após aterrorizantes arrepios na minha barrida, provenientes das inúmeras tentativas de ultrapassar aquele corredor, o medo venceu. Corri e sentei ao lado do meu avô. Um retrato prendeu meus olhos. Nele estava um homem de terno, apoiando seu corpo sobre um cajado.
​Da minha boca ecoaram palavras desconhecidas, causando um assombramento no rosto do meu pai. A minha mãe ficou nervosa, experimentando um ataque de pânico. O terror tomou conta de mim.
​O homem não estava mais no retrato, estava no pé da escada. Obrigava-me a pronunciar algumas informações que ele precisava transmitir a minha família. O que ele disse exatamente eu nunca soube, mas as mãos dele tomando o meu rosto, enquanto os seus olhos negros me puxavam para dentro de um lugar fétido e cheio de pessoas caídas pelo chão, me fez gritar desesperadamente.
​Eu caminhava sobre uma lama nojenta, pegajosa. Pisava sobre os corpos enterrados. Apenas as cabeças estavam a mostra sobre o solo. Elas gritavam por socorro. Algumas delas choravam, outras vomitavam. Eu via magos negros sobrevoando o local. O céu escurecido lembrava o cair da noite. Era um cemitério de gente viva.
​Quanto mais eu berrava, mais aqueles corpos em decomposição me soterravam. Eles mergulhavam para dentro de mim através dos meus olhos, dos meus ouvidos e da minha boca. O meu pensamento ficou tomado por putrefação humana.
​Acordei em um hospital. A minha avó estava comigo e ela repetia incessantemente: Foi um pesadelo, querida! Foi só um pesadelo!
​Depois desse pesadelo, tudo piorou. Toda família ficou aterrorizada. Seja lá o que tivesse se conectado comigo, conseguiu fazer isso através do medo que eu senti, uma vez que vibrações idênticas se conectam. Hoje eu sei disso, na época não sabia nem o que eram vibrações, muito menos que elas se conectavam.
​Lembro-me de falar todos os dias sobre isso. Não gostava mais de ficar sozinha, pois me sentia atormentada pelas lembranças de tal forma que fui apresentada à ansiedade. Achava que isso aconteceria de novo e de novo e de novo. Meus pais, por não conhecerem lugares que ajudassem com isso, optaram por me levar para essa casa de Ganesha (chamo assim porque me soa mais afável), e lá passei alguns meses sendo medicada para sintomas que eu sequer tinha. O que eu precisava tratar se intensificou devido toda a vibração negativa que havia no lugar.
​Uma conversa com Laura em um evento na casa de Ganesha, convenceu meus pais de que meu problema nada tinha a ver com medicações. ​Descobriram a formação dela em psicologia, suas especialidades no desenvolvimento e acompanhamento de crianças autistas. Ela trabalhava com mais de três métodos da psicologia e também tinha formação em Terapias Integrativas como Reiki, Cromoterapia, e Aromaterapia, além de possuir conhecimento astrológico.
​Um anjo que caiu do céu na minha vida. Eu agradeço muito por isso. Agradeço tanto que o universo sempre acaba sendo generoso, nos conectando cada vez mais, como se ela fosse realmente um anjo da guarda. Faz uns bons anos que temos essa relação mais íntima do que qualquer outra que já tive.    Intimidade mesmo é saber o que se passa dentro da cabeça de uma pessoa, e ela sabia tudo que se passava na minha.
​Eu não vim à Terra a passeio, pensei quando avistei a rua onde eu morava. Vim até aqui tão mergulhada em pensamentos, sem ter prestado atenção em nada além das gotas da chuva, enquanto as lembranças escorriam por dentro. Acho engraçado o modo como o cérebro cega os olhos quando estamos olhando pra dentro, na tentativa de resolver ou entender alguma coisa. É como se nada existisse além daquele pensamento.
​O caminho até em casa era relativamente curto e eu fazia o percurso todo a pé. O vento que batia nos meus cabelos ajudava a abanar todas as questões trabalhadas na terapia. Quando eu era pequena, imaginava que os fios de cabelo eram extensões dos pensamentos. Ainda bem que meu cabelo é curto, assim os pensamentos se dissipam no ar com maior facilidade.
​— Preciso lembrar do meu sonho — pensei enquanto entrava no prédio.

Nave da Oitava Assim na Terra como no Céu Volume 1Where stories live. Discover now