1. dançando sobre a minha cova

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Música Inspiração: I Keep Ticking On - The Harmaleighs

Abro os meus olhos com dificuldade, a claridade causa irritabilidade e demoro alguns segundos para abri-los totalmente

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Abro os meus olhos com dificuldade, a claridade causa irritabilidade e demoro alguns segundos para abri-los totalmente. Me deparo com o céu acima de mim, ele não está com um azul convidativo, pelo contrário, está acinzentado e repleto de nuvens escuras e carregadas. Suspiro observando por mais um segundo e sinto a superfície dura debaixo do meu corpo.

Me sento e olho ao meu redor, tentando reconhecer o lugar onde estou. A minha volta está repleta de túmulos com nomes de pessoas que eu não conheço. Eu estou em um cemitério e não faço ideia de como vim parar aqui.

Levanto-me e percebo que estava deitada em cima de um dos túmulos, mas esse é diferente, eu reconheço a pessoa que está ali enterrada. Na lápide constava o meu nome, a minha data de nascimento e da minha morte, que tinha sido apenas um dia atrás.

Qualquer pessoa nesse momento estaria chocada, mas eu não. Simplesmente não consegui esboçar nenhum sentimento a não ser confusão. Quer dizer então que eu tinha morrido? Como diabos isso aconteceu?

— Sim, você está morta. — Escuto alguém falar e automaticamente me viro para analisar.

Um homem vestido com roupas e chapéu preto estava me encarando. Ele segurava uma bengala de madeira em uma das mãos.

— Tudo o que posso te oferecer agora é uma dança. Você aceita? — Ele estende a mão para mim enquanto esperava a minha resposta.

O seu olhar era profundo e enigmático, algo nele me mantinha interessada. Encaixei a minha mão na dele e ele abandonou a bengala no chão. Subimos em cima do meu túmulo e aproximamos os nossos corpos, começando lentamente a balançar, sem que tivesse uma música para nos guiar.

— Você está pronta para analisar as decisões que tomou? — Ele me perguntou enquanto dançávamos sobre a minha cova.

Sem que eu respondesse ou sequer pensasse sobre o assunto as memórias começaram a atravessar a minha mente, em uma visão cinematográfica, como se eu fosse uma mera telespectadora da minha própria vida. Em minhas lembranças eu estou presa em um trabalho que eu odeio.

Ando com um sorriso no rosto, carregando uma bandeja nas mãos com lanches gordurosos e refrigerantes adocicados, usando um uniforme ridículo. Meu cabelo e minhas roupas cheiram a fritura, me causando ânsia.

Ao andar em linha reta até uma das mesas eu derrubo a bandeja com os lanches e o refrigerante se derrama em cima de um dos clientes que fica exaltado, dizendo que não irá pagar pelo serviço e que nunca mais voltará a comer nessa lanchonete. Eu me desculpo, mas não adianta, ele vai embora extremamente irritado e eu arrumo a bagunça. De longe, eu posso ver o meu chefe me analisando.

No final do dia, ele me chama para conversar e me demite. Dá para acreditar? Demitida por derrubar um refrigerante. Mas na verdade eu não me importo, eu não ligo mais para eles.

Retiro o meu avental e o jogo com força em cima do balcão, como uma forma de mostrar que eu não estava nem aí por perder esse emprego. Enquanto eu saio grito mandando eles irem a merda, afinal de contas, eu não tenho mais tempo a perder.

Do meu trabalho eu vou direto para um bar de esquina. Aqueles bares antigos, que fedem a cigarro e onde o dono ainda faz ovos em conserva para vender, mas tudo o que me importa é que tem pinga barata, daquelas que descem queimando a garganta.

Ali eu conheci um cara chamado João, nós bebemos juntos. Bebemos excessivamente e ele se tornou meu amigo. Na madrugada ele me levou até o fim da rua, eu já não sabia mais quem eu era ou onde eu estava.

Nós cantamos com todos os nossos pulmões a música Alegria, Alegria do Caetano Veloso e então João me deixou. Ele foi embora e eu fiquei na rua, sozinha e desnorteada.

Eu andava cambaleando até tropeçar em meus próprios pés. Caí e bati a cabeça no meio fio, o sangue escorreu do meu crânio manchando o meio fio recém pintado de branco, as minhas pupilas se dilataram e em segundos a minha alma deixou o meu corpo.

Eu morri fedendo a fritura, cigarro e pinga. Com o uniforme de um emprego que eu odiava, em meio a uma rua deserta. Que vida de merda.

Agora eu estou em cima da minha própria cova, contando para a Morte as decisões que eu tomei enquanto dançamos.

— Então a minha vida só se resumiu a isso? — Eu perguntei encostando a minha cabeça no peito dele.

— Não se preocupe criança. Você só precisa continuar caminhando. — A Morte disse. Ela colocou as mãos ao lado do meu rosto e o levantou, em seguida, depositou um beijo suave na minha testa. Meus olhos se fecharam e tudo o que eu vi foi escuridão.

Pareceu uma eternidade até que meus olhos se abriram novamente, de forma abrupta. O meu corpo estava tenso e a minha respiração acelerada.

Eu estava deitada no chão ríspido da calçada, as lajotas em atrito com os meus ossos, meu cabelo estava na sujeira e o sol batia em meus olhos, fazendo-os ficar entrecerrados.

Era a mesma rua onde João havia me deixado. Eu estava viva. Fedida, suja, suada e desempregada, mas viva, com a possibilidade de fazer novas escolhas. Exibi um sorriso para o céu azul. Eu voltei para o mundo que quase deixei e agora eu só precisava continuar caminhando. 

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