Tudo começou com uma carta.
Era de manhã, e o vento vinha forte, indicando sinais de chuva. Já conseguia prever o cheiro de barro molhado e o frio chegando.
A carta chegou em um envelope branco, sem remetente, com apenas o destinatário, eu. O meu nome estava em uma letra cursiva, parecendo aquelas usadas em convites de casamento. E pensei se seria um convite de algum amigo meu casando, ou até mesmo um parente bem distante. Mas descartei logo de cara esse raciocínio. Era bem curta, e o papel estava meio borrado pela tinta da caneta.
Eu vejo você, mas não se preocupe, não quero te machucar. Apenas quero você, minha bela. Posso te chamar assim? Minha bela? Te observo durante o seu dia-a-dia como uma novela, eu amo te ver pintar. É um de seus hobbies, não é? Almejo o dia que conseguirei ver suas pinturas de perto. Me coloquei no deve de te observar, espero que não se incomode com isso, ou se sinta ameaçada. Seria o completo oposto do meu objetivo.
Não liguei muito. Primeiro que qualquer pessoa sabia que eu pintava, afinal trabalhava com isso.
Segundo, as crianças nessa área eram maldosas às vezes, e gostavam de brincar com tudo, inclusive com a sanidade dos residentes. E durante essas férias de julho, estavam mais agitados. O velho casal há algumas casas a frente são testemunhas, sempre eram alvos dos moleques.
Esse foi meu primeiro erro.
Deveria ter desconfiado que criança nenhuma teria tal vocabulário, e desenvoltura e esse tipo de letra. Mas deixei passar. Com o pensamento de que era brincadeira idiotas de fedelhos estúpidos sem ter o que fazer. A carta foi parar no lixo, amassada. Me julgava esperta demais. Tolice.
Dois dias depois chegou a segunda carta.
Eu vejo você. Gosto de você. E agora você deve estar pensando em quem sou eu, certo? Mas não ocupe sua linda cabecinha com míseros detalhes como esse. São apenas isso: detalhes. Pense em mim como um admirador secreto ou um anjo-da-guarda, cuidando de você, zelando por você. Quero apenas uma coisa, bela, seu zelo.
A partir dessa, mais outras começaram a chegar periodicamente. E não havia nada que comprometesse a identidade do autor. A partir desse ponto comecei a desconfiar de tudo.
Quando entrava em minha casa, depois de chegar do trabalho ou da rua, sentia que não estava só, ou que alguém havia entrado lá. Um cheiro diferente preenchia todos os cômodos da minha casa, e eu não sabia se estava imaginando isso.
Pressentia que tudo fora revirado. Porém as janelas e portas não apresentavam sinais de invasão, e seria impossível para alguém tirar algo do lugar e colocar no mesmo, sem mexer um milímetro.
Comecei a ficar paranoica, me assustando com meu reflexo nos espelhos espalhados por minha casa.
Um farfalhar de folhas me fazia olhar para todos os lados.
Comecei a ficar ansiosa, esperando pela próxima carta.
Eu vejo você, mas não se preocupe, não entraria na sua casa sem permissão. Ou entraria? Eu conheço você, minha bela, como a palma da minha mão. Te conheço até melhor. Eu te observo todos os dias, não seria esperto da minha parte entrar na casa de uma donzela e remexer em seus pertences, certo? Espero que note a retórica. Sua nova pintura, bela, seu auto retrato, seria irresponsável pensar que é para mim?
Essa pessoa sabia coisas demais.
Meu autorretrato era um projeto meu, não havia contato para ninguém. Essa frase denunciava que entrou em minha casa. De que forma saberia dizer tais coisas se meu estúdio era fechado? Mas como fazia isso? Como entrar na minha casa sem notificar o alarme? E como sabia que eu desconfiava da invasão?
Não conseguia dormir, acordava no meio da noite tendo a sensação que alguém me observava. Revirava na cama, pensando em quem poderia ser. As cartas chegavam quando eu ia trabalhar e assim, não conseguia pegar o carteiro e interrogá-lo.
Qualquer um poderia ser suspeito. Desde o faxineiro do trabalho, a chefe do restaurante onde eu almoço. Deus, até o motorista do Uber e o próprio carteiro.
As cartas continuavam, fielmente.
E então, as ligações começaram. O telefone tocava esporadicamente, ao contrário das cartas. Quando eu atendia, tentando alguma resposta, do outro lado da linha era apenas estática. Desligava e olhava ao redor, procurando uma sombra na janela ou qualquer coisa.
Eu vejo você atender o telefone esperando que alguém responda. Me desculpe por isso, minha bela, mas eu descobri que estou em meu limite. Precisava de outra dose de você, pensei que sua voz pudesse aplacar esse sentimento, me acalmar. Chega de falar de mim. Como foi o trabalho? Espero que aquele Ulisses para de te amolar. Você comeu bastante essa semana, ein? Mas não descuide de seu peso, minha bela, gosto de você assim.
As cartas estavam ficando mais ousadas. Elas detalham tudo o que fazia nos dias anteriores, começou a falar sobre meus hobbies, discutia minha rotina como um velho amigo, dava opinião em coisas pessoais e do trabalho, se infiltrou em mim como um parasita. Ele sugava toda a minha energia, minha cabeça era isso ou nada.
Eu vejo você, mas percebi que vem se descuidando. Será por causa de mim, minha bela? Estou ocupando seus pensamentos com tal intensidade? Você vem pensando muito em mim? Fico lisonjeado se a resposta for sim, creio que estou cada dia mais próximo de chegar em você. Ficar com você. Você sabe muito bem que eu gosto de você, não é? Não se preocupe, me anunciarei antes de mais nada. Tudo que eu penso é em você.
A qualquer momento eu perderia minha sanidade. Passava horas sem dormir, e não conseguia me focar no trabalho.
Imaginei que seria assim por meses e anos, mas então, tudo mudou.
Havia acordado sobressaltada, imaginando uma... coisa rondando minha casa, entrando em meu quarto, me observando. Algo parecia errado. O toque do telefone me tirou do meu tupor, e quando o atendi, como sempre era apenas estática, e então alguém falou:
— Eu vejo você.
Era uma voz alterada e ainda por cima de um chiado, como se um rádio velho estivesse tentando entrar em sintonia em uma estação.
Imediatamente, olhei para todas as janelas do cômodo, me demorando em uma sem a cortina. Sem chances, eu estava no segundo andar e não era possível ver nada da rua ou de qualquer lugar. Certo? Não poderia ser que ele estava me vigiando.
Será esse o momento que tanto mencionava nas cartas?
Lembrei em todas as vezes que imaginei o agora. Como seria, o que eu falaria, e todo esse "treinamento" foi por água abaixo.
Meu corpo tremia de excitação, sentia o sangue bombardeando a uma velocidade enorme pela adrenalina.
Não poderia deixar passar. Era o agora ou nunca. Tinha que fazer alguma coisa, falar alguma coisa.
Meu coração na garganta, pronto para pular de meu corpo e sair andando por aí.
A voz repetiu a mesma frase, "eu vejo você", e decidi por perguntar algo. Algo que dormia pensando, algo que sempre quis lhe perguntar, e para mim, a única pergunta que importava, a essencial. E era ela que me fazia passar noites sem dormir:
— E me diga, eu estou bonita?
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Eu vejo você
Misterio / SuspensoUma mulher começa a receber algumas cartas, é isso. Escrevi esse conto para participar de um concurso, mas não ganhei e resolvi postar. E ia tentar reescrever, mas desisti.