Marcas no Tempo

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Dois anos. Dois anos passaram depressa diante de seus olhos, como uma ventania matutina que sopra de repente e então desaparece tão rápido quanto viera. As horas tornaram-se segundos, os dias resumiram-se a uma hora e os meses eram um único dia. Conseguia lembrar-se, porém, de cada momento que passou ao seu lado. O casebre no topo de uma alta colina, isolado do mundo, onde vivia com a paz, o sossego e seu amado. Ao abrir as janelas, as flores de seu jardim nos fundos da casa davam-lhe bom dia por meio do aroma adocicado. O sol sorria, os pássaros conversavam nos galhos da grande figueira ao lado do casebre, o mato rasteiro dançava a música do vento.

Tudo se fora tão rápido quanto viera.

Há dois anos, casou-se com o homem que lhe dera a vida no alto daquela colina. Seus mundos colidiram meses antes quando o pai da moça, um fazendeiro com boas terras, e o pai do jovem rapaz, um humilde morador da pequena cidade próxima à fazenda, encontram-se na feira semanal do centro, a qual ocorria aos domingos. O pai do jovem, cujo era um dos melhores pescadores da região, decidira vender alguns de seus peixes na ocasião. O fazendeiro, acompanhado de sua bela filha, fora em sua barraca. Aquela era apenas para ser uma simples compra de peixes frescos, porém a moça avistou sua felicidade por trás do balcão improvisado.

Dali levantou-se um rapaz, o mais belo que já pusera os olhos. Não trocaram uma palavra, apenas sorrisos e olhares. Ambos perderam a capacidade da fala. O rapaz via nos olhos daquela jovial criatura um brilho alegre e contagiante, do qual não conseguia desvencilhar. Traziam o mesmo brilho do Sol que surge após uma tempestade, o calor reconfortante que ele gentilmente oferece após a ventania fria e arrepiante, a paz que carrega consigo após o barulho enlouquecedor dos trovões.

Quanto à moça, esta via mais que a beleza de sua face escultural. Enxergava algo invisível e sentia o inexplicável. Não conseguia parar de olhá-lo, sentia uma força do além paralisá-la em frente à barraca, olhando para aquele que roubara seu coração com um único golpe fatal: um sorriso tímido, porém cheio de graça, e uma doçura que não encontrara em nenhum outro lugar. O mel que comprava não era mais doce que aquele sorriso, nem o açúcar que adoçava seu café ou o néctar da melhor fruta. Aquele não era mel que se pudesse comprar, era açúcar que adoçava a vida e néctar da melhor graça e bondade.

O fazendeiro comprara seu peixe e nem percebera o estado de transe de sua querida filha, que fora obrigada a voltar à realidade. O tempo passara rápido e nenhum dos dois jovens dera-se conta. E após isso, passara-se ainda mais rápido. Sentia até que fora ontem que correra da casa de seu pai em busca do amado. Os dois percorreram toda a cidade a procura um do outro.

Por uma obra do destino, encontrou o jovem moço sentado em um banco na única grande praça que havia na pequena cidade. Ele estava desesperançado. Sua mente carregava uma onda de pensamentos depressivos. Aquela por quem se apaixonou moraria para sempre apenas em seus sonhos mais belos e seus olhos jamais reencontrariam a imagem de seu rosto angelical.

As desesperanças tornaram-se tristeza e logo a vida perdera o brilho no qual encontrara naquela mulher. Ela se foi e levara consigo a felicidade do rapaz. Em uma inútil tentativa de recuperar os ânimos perdidos, decidiu caminhar pela cidade, sem rumo e sem um objetivo, apenas para deixar sua mente vagar e eliminar naturalmente seus lamentos. Porém, ao chegar à praça, descobriu que o desânimo destruíra até mesmo seu aprecio por uma boa caminhada, algo que antes lhe era tão prazeroso. Sem encontrar motivos para continuar seu caminho, sentou-se em um dos bancos e apenas observou o que ocorria em sua volta.

Fora quando novamente avistou-a do outro lado da rua, com seu olhar doce e gentil, sua beleza única e invejável, seu ar delicado e angelical. A bela criatura viera correndo ao seu encontro. A moça vira seu amado abrir um sorriso, que dessa vez não era tímido, e sim o mais alegre e radiante que alguém poderia dar. Parecia ontem que seus corpos se encontraram em um caloroso abraço e suas almas laçaram-se uma a outra, como correntes que se ligam para não mais romperem. Seus mundos enfim colidiram para tornarem-se apenas um, muito maior, mais belo e formado pela felicidade.

Em seguida, as manhãs iam, as tarde vieram e passaram despercebidas. As noites mal eram vistas. Parecia ontem que o casal passara os mais belos momentos, sempre juntos e inseparáveis, apesar de todas as dificuldades e obstáculos que a vida impusera. Parecia ontem que fizeram os piqueniques, que foram a bailes e restaurantes, que viajaram juntos para lugares distantes. Parecia ontem que ligaram suas correntes naquela praça por meio do beijo recheado de sensações que apenas o mais verdadeiro amor poderia fazer florescer no interior de cada ser humano.

Houve dias de tempestade, dias de Sol, noites de Lua, noites de escuridão, mas mantinham as mãos dadas e enfrentavam ou aproveitavam-nas juntos. Fossem dias bons ou ruins, fossem noites belas ou sombrias, o tempo passava. Algo invisível e indefinido, que não necessita de existência para existir, aquilo que o infinito é e que os olhos não vêem. Os sentidos não percebem, mas toda consciência tem noção de sua grandeza, superioridade e prepotência. O tempo é poder que todos possuem, mas que lhe escapam tão facilmente. O tempo é o destruidor e inimigo de todos que lhe conhecem. O tempo é o amigo de quem lhe cuida e usa seu poder com cautela. O tempo marca, cura e destrói. Enquanto que está à frente, já passara diante dos olhos de seu observador, e este já perdera um pedaço de sua infinidade.

O tempo dá às costas para quem espera sua chegada, e acena para quem olha para seu ponto mais distante que se possa avistar.

A infinidade não cessa, mas nela há marcas do fim daqueles que a atravessam. As lágrimas, os sorrisos, os gritos e os sussurros não marcam seu percurso, mas sim daqueles que o seguem, estes tem vida que acabam e marcam mais um fim no meio do infinito. O tempo sempre dá às costas para o fim e continua seu longo caminho rumo ao seu próprio ponto final inatingível.

A moça perguntou-se qual seria a maior marca que deixara naquele infindável caminho que era o tempo. Não conseguia decidir-se. Parecia ontem que entrara na igreja vestida de branco e encarara seu noivo no altar, que apesar do nervosismo, sorria como no dia em que a reencontrou na praça. Lembrou-se de como tudo lhe parecia novo, tão grandioso e tão belo. Da mesma forma, o tempo dera-lhe as costas e continuou andando em passos apressados, sem esperá-la por sequer um segundo, sem deixar com que parasse para olhar para trás e ver quão longe havia ido.

Parecia ontem que havia dito "aceito" enquanto encarava seu noivo com lágrimas de felicidade beirando suas pálpebras. O sorriso do rapaz, como sempre, fazia seu rosto reluzir com graça, elegância e doçura. Lembrava-se da aliança que ele pusera em seu dedo, enquanto murmurava o mais sincero "eu te amo". Este fora o momento que acabara com o seu temor pelo novo e desconhecido. Aquele era o homem de sua vida e não restavam dúvidas.

Dois anos passaram desde o casamento. Nos primeiros meses, lutaram para comprar a casa na colina. Então, o rapaz procurou seu próprio emprego para ver-se independente dos lucros da pesca de seu pai. Houve diversos obstáculos após o casamento, lembrava-se disso, e os dois, como os guerreiros que eram, levantavam suas armas e investiam contra qualquer inimigo. Quase não conseguiram comprar a casa, mas enfim viram que estavam sobre um teto que lhes pertencia. O jovem ficara desempregado durante dois meses, mas um dia a moça acordara e vira pão, manteiga e café sobre a mesa. O tempo não era generoso, mas não era cruel. Pensou, então, o que ele seria. Por que ele haveria de ser cruel se ele lhe deixara momentos tão bons e como ele haveria de ser gentil se os fazia passar por tantas misérias?

Após encontrar-se com o seu fim, enfim percebera. Correr sem descanso era o que definia o próprio tempo, era essa sua natureza. Ele não lhe proporcionava momentos bons ou ruins, pois não tinha capacidade para fazê-lo. Tudo que conquistara fora porque lutou contra a própria vida e as dificuldades que encontrara por um motivo ou outro. A felicidade que construíra fora obra de si mesma.

Olhara mais uma vez para trás, orgulhosa de quase todas as suas obras. Então, virou-se para seu amado que, com os olhos vermelhos pelo choro e com uma expressão tristonha, delicadamente depositava uma rosa sobre o túmulo de sua amada. A moça sorriu. Havia ajudado a si mesma e a ele a construir as marcas no tempo. Alcançara seu fim com vitória, agora restara torcer para que ele traçasse sabiamente o restante de seu próprio caminho para alcançar seu melhor final. 

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⏰ Última atualização: Feb 14, 2021 ⏰

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