VI

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No final de junho eu encerrei o caso mais terrível da minha vida.

Lembro quando dona Geralda me procurou, dois meses atrás, levando um diário num pacote. Agora temos no inquérito dois diários, o primeiro preenchido por Armandico e o segundo por ela.

Infelizmente dona Geralda não teve a mesma sorte que o marido. Quando a encontramos ela já se encontrava morta.

A causa mortis indicou um infarto. Seu coração não aguentou a pressão.

O seu diário foi preenchido até o dia 15 de junho, depois disso só apareciam os recortes colados pelo sequestrador.

Armandico me ajudou muito na solução do caso, quando me disse que aquele quem o tinha feito como refém, provavelmente era o mesmo que sumira com sua esposa.

Seguimos nesta linha de investigação, primeiro enumerando quem poderia querer fazer mal a ela.

A investigação resultou naquilo que eu já tinha em mente: dona Geralda não tinha inimigos, nenhum. Nem no bairro, nem na família, na igreja, entre os amigos e conhecidos. A opinião era unânime: tirando alguns palavrões que ela costumava dizer, era uma alma caridosa, uma mulher que não tinha medo de trabalhar, uma pessoa que não merecia morrer de forma tão bárbara.

O seu velório confirmou isso, pois a cidade inteira parou numa triste tarde chuvosa, para acompanhar seu enterro no cemitério das Acácias. Até o governador esteve presente, aproveitando para fazer campanha para reeleição, é claro.

Com base nestes fatos, só existia uma pessoa no mundo que poderia ter algo contra ela, mas que tinha um álibi praticamente incontestável.

Eu e o dr. Raul apertamos novamente o vizinho Mário, até que ele abriu o jogo, chorando feito uma criança.

*Eu cheguei a sair com a Geralda, mas foram só duas vezes. O Armandico estava desmaiado na cachaça, como sempre, e nem viu.

Essa conversa se passou no início de junho, então um veículo descaracterizado da polícia foi colocado para vigiar o marido, dia e noite, mas os relatórios apontavam que ele só ia ao mercado e no bar, depois passava a noite toda em casa.

Eu parecia ter voltado para a ativa, não saía da delegacia, até que o delegado resolveu parar com a vigilância e me comunicou.

*Este senhor já comeu o pão que o diabo amassou. Foi algum maluco, um traficante, a gente nunca sabe de tudo. Tenho outros casos em andamento, não posso mais deixar um homem vigiando por 24 horas o nosso suspeito. Sinto muito.

Eu sabia como a rotina policial funcionava, sempre com o orçamento apertado, contando com muita ajuda da Guarda Municipal, tanto para serviço administrativo quanto operacional, com a utilização de investigadores ad hoc.

Era dia 9 de junho. Resolvi dar uma passadinha na casa do Armandico pra conversar com ele. O que queria mesmo era amarrar ele numa cadeira e o torturar, até ele abrir a boca, mas decidi ser mais inteligente que isso.

Ele me convidou para entrar. Estava mais corado, não parecia ter bebido e me ouviu com atenção.

*Estamos fazendo todo o possível para encontrar sua esposa, mas não conseguimos nenhuma pista até agora.

*O doutor não tem nenhum suspeito?

Comprimi os lábios e balancei a cabeça, confirmando.

Ele soltou um suspiro. Pra mim foi de alívio.

*Então vamos deixar na mão de Deus, doutor. Ele sabe o que faz.

Apesar da minha fé, eu não ia deixar só por conta do Altíssimo. A partir daquele mesmo dia eu comecei a montar vigilância nas imediações da sua casa, com um carro alugado.

Fiquei 6 dias nessa campana, chegando a dormir no carro, quando algo me chamou a atenção, num dia em que ele voltou do mercadinho do bairro. Para alguém que morava sozinho, ela trazia sacolas demais nas mãos.

Fui ao mercado, me identifiquei e descobri que ele comprara muitas sacolas de pão.

Pão!

Um estalo me veio a mente. Podia não ser nada, mas não podia arriscar.

Fiquei na espreita.

Mais tarde ele voltou com as mesmas sacolas e foi para o bar. Não tive dúvidas.

Liguei para o delegado e lhe falei das minhas suspeitas. Tive que me impor aos gritos para que ele cedesse.

Algumas horas depois a viatura chegou, com um mandado de busca.

Era uma atitude arriscada, poderíamos por tudo a perder, mas eu queria seguir meu instinto.

Invadimos o bar. Armandico estava deitado de cueca, num cômodo do fundo, desmaiado na cama de tão bêbado.

Gilberto, como na vez anterior, abriu a porta do outro alçapão, que encontramos no solo. Lá no fundo do buraco, um corpo jazia imóvel. Era dona Geralda.

Armandico foi preso, respondendo por homicídio qualificado com requintes de crueldade, tortura e sequestro.

O dono do bar informou que alugava o cômodo para ele, quando Armandico não queria voltar pra casa e brigar com a patroa. Alegou também que ele ficou morando um bom tempo ali, só saindo pra beber.

O assassino da dona Geralda, como os jornais noticiaram, resolveu cooperar com a justiça, fazendo um acordo para diminuir sua pena, dando detalhes de como praticou o crime.

Eu ouvi a gravação, com ódio de mim mesmo. Se tivesse agido antes, dona Geralda ainda estaria viva.

"Ela era uma vagabunda, me traiu com o vizinho, merecia morrer. Não só morrer, merecia sofrer.

"Construí com calma, sem ela saber, o cativeiro na minha edícula. Depois um dia sumi, fiquei vigiando e ela nem se importou. Aí construí o segundo buraco no fundo do bar e planejei tudo. Voltei e me escondi no buraco e comecei a executar meu plano. Sofri bastante, passei fome mesmo, mas enganei todo mundo.

"Deixei o falso diário pra ela encontrar e voltei para o buraco. Fiz meus cálculos e deu tudo certinho: a egoísta pensava em se mandar pra Itália, eu vi as passagens, com a data e horário marcados.

"Fiquei esperando a maldita no aeroporto e a trouxe de volta, alegando que tinha uma surpresa pra ela e a idiota acreditou. A levei no cômodo do bar, coloquei uma droga num copo de vinho que ela bebeu e depois que desmaiou, a coloquei no buraco.

"Acho que ela sofreu bastante. Espero isso de todo coração e não me arrependo de nada do que eu fiz, a não ser de não ter colocado o Mário com ela, pra morrerem juntinhos.

Qual o limite da maldade humana? Até que ponto alguém pode ir pra fazer alguém sofrer?

Eu conheci o ápice da maldade na confissão do Armandico. Espero que ele mofe na prisão pelo resto da vida. Espero também que exista um inferno e que uma vaga lhe esteja reservada, pra quando ele partir desta pra pior.

Assim, pra mim, a justiça divina será feita, pois a dos homens, na qual participei, já está concluída.

FIM


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Vingança DiabólicaOnde histórias criam vida. Descubra agora