O dia da viagem

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Lucille estava sentada na cadeira defronte a janela, uma caneca de chá fumegante nas mãos, o xale recobria seu corpo, um sorriso bobo estava preso em seus lábios, mesmo que as memórias não fossem boas. Estava de férias, já havia organizado tudo para a saída na manhã seguinte e mesmo que não contasse para ninguém além dela mesma, toda vez que a família saía de férias ela se lembrava das mesmas coisas, se lembrava do passado. As recordações se iniciavam sempre da mesma forma, a mãe organizando tudo para a viagem, (exatamente como ela fazia) o irmão gêmeo sempre a pregar peças, o pai gravando tudo, as horas no carro, as estadias, se lembrava de todas as férias, único mês do ano em que os pais os liberavam de ir à Igreja todo domingo, vinha de família extremamente religiosa, perder uma missa no domingo era inconcebível, mesmo que estudasse em escola católica e assistisse uma missa todos os dias. A faculdade também foi católica, exatamente no mesmo ritmo, isso nunca havia incomodado Lucille, até o dia em que conheceu Aurore e aceitou que era diferente, não era coisa de sua cabeça, não era uma doença, não era um demônio, era amor, puro e simples amor, daqueles que cresceu vendo em seus pais e almejou ter na vida. Ali morava o ponto de sua tristeza, ao se aceitar, se amar, amar Aurore, a família fez com que fizesse uma escolha e mesmo com muito pesar, ela escolheu Aurore, a dor em seu peito fisgou e a lágrima teimosa rolou, fazia catorze anos que não via seus pais, seu irmão ou qualquer outro parente, sua família era totalmente Aurore, seus filhos e os animais de estimação que tinham, isso a entristecia um pouco pois queria que os filhos conhecessem os avós, mas não se arrependia nem por um único minuto nesses catorze anos de ter feito a escolha que fez, nunca fora tão feliz e completa, mesmo assim, sentia falta de sua outra família.

Aurore adentrou o cômodo e Lucille limpou o rosto para receber a esposa.

- Venha deitar, amanhã levantamos cedo e o primeiro turno é seu – disse entre bocejos.

- Vou terminar o chá e subo logo em seguida.

Aurore acenou afirmativamente e subiu, Lucille terminou o chá, fechou a casa, verificou os filhos, cobriu o cachorro e foi se deitar.

- Acorda mamãe! Acorda mamãe! É hora de levantar!

Louis pulava sobre a cama para acordar Lucille, quando abriu os olhos foi cometida pelos beijos e abraços do pequeno, era assim que ele a acordava toda manhã, com muitos beijos e abraços, ela o abraçou, o beijou na testa e sussurrou em sua orelha:

- Quem te ama mais que tudo nesse mundo?

- Você mamãe!

- Eu mesma!

Eles se levantaram e desceram, Louise já estava vestida, de cabelo penteado e tomando seu café, sua filha mais velha era tão autodidata que não acreditava que ainda iria fazer oito anos, ela sorriu para a mãe que lhe afagou os cabelos tomando o cuidando para não bagunçar:

- Bom dia mamãe – ela disse depois de um gole de leite.

- Bom dia minha filha, tudo pronto pra sairmos logo?

- Sim, deixei tudo pronto desde ontem.

Lucille sorriu com a resposta da filha, olhou para ela e pode ver Sophie agarrada a Aurore vindo em sua direção, quando a viu soltou a mãe e correu para os braços de Lucille:

- Bom dia mamãe.

- Bom dia minha filha, tudo pronto para sairmos logo?

Sophie olhou a mãe e fez uma careta antes de dizer:

- A Senhora está de pijamas mamãe!

Lucille não pode deixar de sorrir perante a constatação da filha.

- Me ajeito rápido e você? – disse entrando em posição de quem vai correr.

- Siiim – disse a pequena subindo a alça do macacão e correndo na frente da mãe. Lucille riu ao vê-la subir as escadas.

As saídas eram sempre tranquilas, arrumaram os meninos e o cachorro no banco traseiro do carro e partiram, sempre dividiam as horas ao banco do motorista, as três primeiras eram sempre de Lucille e as três seguintes de Aurore, na segunda parada logo depois do jantar Aurore se sentou ao volante, os filhos se ajeitaram e pegaram no sono, Lucille estava com a mão na perna da mulher, olhava admirada a pessoa maravilhosa que havia escolhido para compartilhar a vida, pensava feliz nos anos de amor e companheirismo, na ansiedade de chegar ao chalé e organizar as coisas, os s'mores que comeriam.

- Você está bem minha Vida?

- Estou apenas feliz.

Esta foi a última frase que Lucille pronunciou.

A luz alta, o som do para brisas estilhaçando, o barulho do freio dos pneus, o grito da mulher, o ganido do cachorro, os últimos sons que Aurore ouviu antes de desfalecer.

Aurore acordou no hospital dias depois do acidente, ao abrir os olhos viu a enfermeira a lhe sorrir:

- Está tudo bem, vou chamar o médico para falar com você.

Não demorou até que um senhor atarracado de barbas cinzas entrasse na sala, pasta nas mãos, semblante fechado:

- Como você está se sentindo Aurore?

- Bem – disse em tom baixo e rouco.

- Ótimo. Bem as escoriações que você tem irão sarar em breve, você teve a perna e o braço direito quebrados e algumas costelas, mas...

- Cadê minha esposa? Meus filhos?

O médico já esperava tal pergunta, puxou a cadeira para perto da cama, sentou-se com o olhar baixo, respirou fundo e começou:

- O carro que bateu em vocês, bateu do lado de sua esposa, ela, seus filhos e o cachorro não aguentaram a batida, chegaram ao hospital vivos mas nada pudemos fazer para que assim continuassem, você foi a única sobrevivente do acidente, eu realmente sinto muito Aurore.

O raiar do OuroOnde histórias criam vida. Descubra agora