Toda a dor que não sentira até então desabou sobre ela, sentiu o pânico engolir sua vida:
- Mas onde eles estão?
- O enterro foi há dois dias, não sabíamos quando você ia acordar e isso infelizmente não era algo que poderia esperar.
Caiu em prantos, o mundo desabou, só se questionava o motivo pelo qual não morrera também, se sentia vazia e morta mas seu coração batia e a cada batida doída desejava ter morrido junto, voltara a ser a mesma pessoa sozinha que era antes de conhecer Lucille, voltara a não ter uma família, pessoas que a esperassem chegar, como iria para casa? Como arrumaria tudo? Não pudera nem se despedir. A dor era imensa e já não sentia mais vontade de permanecer viva.
Quando se viu livre do gesso e da cadeira de rodas, doou os pertences da esposa e dos filhos, vendeu a casa e decidiu que não iria ficar mais em Ijburg, esse lado da Holanda não tinha mais nada para oferecer a uma pessoa sozinha e que pretendia permanecer assim. Comprou um apartamento em Jordaan e se mudou, ares novos talvez lhe fizessem bem.
Voltou ao seu trabalho sem empolgação, somente porque precisava comer, não que isso fizesse diferença em sua vida mas a terapeuta dizia que comer e manter a higiene era fundamental para uma mente sã.
Todo dia 05 de Janeiro visitava o cemitério, deixava flores e contava para a família como tinha sido o ano anterior. O acidente podia não ter deixado marcas físicas, porém não podia dizer o mesmo do emocional, a depressão e a solidão que a acompanharam desde aquele dia se tornaram suas amigas depois de um tempo.
Dez longos anos se passaram até o dia em que Aurore se levantou naquele 05 de Janeiro para ir ao cemitério e viu a esposa sentada no sofá, uma caneca de chá fumegante nas mãos, ela não podia acreditar no que via e delicadamente se sentou com medo de que ela fosse embora:
- Lucille?
- Oi meu bem, quer uma xícara de chá?
- O que você está fazendo aqui?
- Tomando uma xícara de chá antes que as crianças acordem, você quer?
Aurore balançou negativamente a cabeça sem acreditar no que via.
- O que foi? Aconteceu algo com as crianças? Por que está me olhando assim?
- Porque não é possível que você esteja aqui, sentada comigo.
- E por que não seria?
- Porque você e as crianças morreram. Hoje faz dez anos.
- Impossível, estou bem aqui, bem viva, veja!
Lucille esticou a mão e tocou o rosto de Aurore, a mão quente, o cheiro de jasmim inundou o ar, Aurore afagou a mão de Lucille contra seu rosto, depois a abraçou, sentiu como se o mundo se iluminasse novamente, tudo a sua volta fazia sentido, o universo era mais uma vez o lugar onde ela queria estar e esteve por mais uma semana e outra e outra até que sua campainha tocou, abriu a porta sorrindo e quem batia era sua terapeuta:
- Aurore você não tem comparecido as sessões, você está bem?
- Estou ótima, olha quem voltou para mim – disse apontando para o sofá onde Lucille estava sentada.
- Quem?
- Você não está vendo? É Lucille sentada no sofá.
A terapeuta olhava para o sofá onde não havia nada além de um xale velho.
- Sim claro que estou, inclusive Lucille me ligou semana passada pois sabia que você esqueceria dos exames que tinha para fazer hoje, então nesse caso seria melhor se fôssemos logo.
Aurore ficou com medo e olhou para Lucille:
- Vá meu bem, estarei aqui quando voltar.
Concordou então em acompanhar a doutora que a levou até o hospital, fez todos os exames que lhe foram pedidos, mas não voltou para casa, permaneceu internada até a confirmação de um resultado que não sabia qual era.
- Aurore? – a terapeuta entrou no quarto – como você está?
- Bem, mas quero ir para casa Lucille está me esperando.
A terapeuta respirou fundo.
- Aurore, Lucille não está em casa esperando você.
- Está sim, você a viu, ela te ligou.
- Eu não a vi, ela não me ligou, fui te buscar hoje pois estava com medo de que você perdesse seus exames como estava perdendo as sessões. Os resultados dos exames não são bons, detectamos uma massa no seu cérebro que infelizmente acreditamos ser inoperável. Eu realmente sinto muito.
A mulher na cama sorriu, como a terapeuta nunca tinha visto sorrir antes.
- Isso significa que me enquadro para uma eutanásia?
A terapeuta foi pega de surpresa pela pergunta, não esperava de maneira alguma que aquela seria a reação de Aurore, mas respondeu mesmo assim.
- Se realmente não houver tratamento, sim.
Era tudo que ela queria ouvir.
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Caronte parou a barca e fez menção para que descesse, era o pôr do sol mais lindo que vira na vida, o sol descendo bem devagar, como se o mar o estivesse apagando, deixou os chinelos na beira da água e adentrou um pouco mais para que seus pés se molhassem e ela finalmente pudesse sentir alívio.
- Senti sua falta.
A voz doce de Lucille confirmou que estava tudo bem, tudo na ordem que deveria ser, como deveria ser a muito tempo. Lucille envolveu Aurore em um abraço e juntas olharam o mar apagar o sol, elas sabiam que agora estava tudo bem.
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O raiar do Ouro
Short StoryAurore está tranquila tomando seu café quando sua vida muda totalmente ao conhecer Lucille. [FINALIZADA]