Minha Primeira Carta

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Amegakure, 21 de julho de XXXX

 Querido Shisui,

 Já faz um tempo, não? Espero que, seja lá onde você estiver, as coisas estejam dando certo por aí e que você esteja bem.

 Quanto tempo se passou desde o dia em que você partiu? Um ano? Ou foram dois? Confesso que não me ative muito ao correr do calendário. Minha vida despencou de tal modo depois de tudo o que aconteceu que o tempo se tornou um detalhe irrelevante; ele sequer parece correr. E dessa vez, diferente do que um dia já foi, eu estou sozinho nessa.

 Aqui, infelizmente, as coisas não vão nada bem. Pelo menos, entretanto, ainda posso lhe escrever essa carta. Não sei se vai ajudar a doer menos, como era quando você estava aqui de fato e me ouvia por horas a fio contando coisas e pensamentos tão íntimos que eu mesmo mal conhecia, quem dirá outro além de ti. Eram tempos instáveis e apavorantes, com certeza, mas algo na forma como você sorria e tocava meu ombro após todo o longo discurso de reclamações fazia tudo parecer menos assustador. Eu me sentia seguro, até.

 De qualquer forma, melhorando ou não, vou fazer uma tentativa de organizar meus pensamentos por meio desta carta. É um longo assunto, então espero que você esteja sentado. Também vou logo avisando que não é muito agradável. Mas isso você já vai descobrir.

 Eu nunca tive coragem de escrever-lhe antes contando o que realmente aconteceu depois que eu lhe perdi. Não que eu não tenha tentado, mas o papel sempre acabava molhado e a tinta manchada tornava minha letra ilegível. Ultimamente, porém, venho percebendo que guardar tudo pra mim e seguir adiante é uma tarefa mais difícil do que eu possa suportar. Então, cá estou eu, novamente dividindo tudo com você. Sinto muito por ter que trazer, de novo, más notícias, mas não tenho outro a quem recorrer. Nunca tive.

 Você, melhor do que ninguém, sabe que eu nunca fui uma pessoa de muitas companhias e isso não mudou. Você também sabe que, mesmo se tratando das pessoas relativamente próximas que eu tinha ao meu lado, nunca fui muito de me abrir. Um sorriso sincero já era algo raro de terceiros conseguirem arrancar de mim, quem dirá uma conversa sobre meus sentimentos e inseguranças, onde eu dividisse algum fardo. Só uma pessoa conseguiu alcançar ambos. Você, Shisui.

 Chega a ser desconcertante, sabe? Desde o dia em que nos conhecemos, naquela floresta em que eu treinava desde pequeno, algo em você me tocou como ninguém nunca havia conseguido tocar antes. Algo no seu sorriso, no seu tom de voz aconchegante, na escolha das suas palavras, sempre me deixava sem defesas. Era como se você, só por existir, me atraísse naturalmente em sua direção. Poucas palavras e já éramos inseparáveis. Logo eu, uma criança tão fechada, que nunca havia permitido a formação de laços com outros da minha idade, completamente cativado por um garoto que apareceu do nada.

 Eu sempre achei que não tinha tempo pra essas coisas, laços e tudo mais. Eu tinha um objetivo difícil, quase inalcançável, de acabar com conflitos grandes demais para uma pessoa só resolver e para isso eu tinha que ser forte. E ser forte demanda esforço e energia. Eu não podia perder tempo com outras coisas, certo? 

 Felizmente, você me mostrou que eu estava errado.

 Meus laços com você foram o que me mantiveram firme, no fim das contas. Você, Shisui, foi meu alicerce, a única pessoa com quem eu pude compartilhar minhas dores e meus sonhos, sem censuras ou máscaras. Você foi a pessoa que permitiu que o verdadeiro Itachi pudesse se expressar, viver. E eu sou eternamente grato por isso.

 Mas você não está mais aqui. Eu não tenho mais em quem confiar ou com quem dividir tudo, do bom ao ruim. E isso dói mais do que eu imaginei ser possível.

 Lembrando daquele fim de tarde, no penhasco, quando você me confiou seu futuro e seu poder pouco antes de partir, foi como se metade de mim tivesse ido também. Doía tanto que eu pensei que meu peito fosse se partir em dois. Sempre que eu me sentia assim, só tinha uma pessoa a quem recorrer. Mas agora, essa pessoa — ou a falta dela — era o motivo da minha angústia.

 Eu não podia, entretanto, fraquejar. Não poderia colocar todo o seu sacrifício a perder, independente do quão doloroso fosse me manter no alto daquele precipício estando tão próximo à beirada. Então, eu me mantive firme. Eu continuei.

 Rotas pacíficas não existiam mais e o que aconteceu depois foi como um soco no meu estômago. Cada vida ceifada, Shisui, doeu como o inferno. Cada grito de horror e sofrimento vindo de lábios inocentes perfurou-me como a mais afiada lâmina. Os olhares aterrorizados de cada uma das pessoas que sorriam para mim todas as manhãs, antes de finalmente abraçarem a morte, me sufocou.

 Não se passa uma noite em que eu consiga dormir sem recordar de tudo em seus mais vívidos e horrorosos detalhes. Não se passa um dia em que eu não sinta a consistência viscosa e quente do sangue dos corpos sem vida de todos que, um dia, eu e você juramos proteger juntos. 

 Entretanto, no meio de tanta morte que causei, pelo menos uma vida consegui preservar. A de Sasuke.

 Sasuke é a pessoa que eu mais amei nessa vida, você sabe bem disso. Assim como foi com você, Shisui, eu naturalmente me afeiçoei a ele desde o momento em que vi aquela pequena e fascinante nova vida vir ao mundo, tão inocente e frágil. Tão pequeno e feliz, seu sorriso iluminava qualquer escuridão que viesse a me consumir em dias exaustivos. Ser seu irmão mais velho e lhe trazer orgulho sempre foi uma das minhas maiores alegrias.

 Você pode imaginar, então, o que eu senti ao ter que lhe dizer palavras duras e cruéis enquanto seus olhos, normalmente tão brilhantes, estavam carregados da mais profunda dor e medo ao me ver no alto daquela pilha de cadáveres. Dos cadáveres de nossos pais.

 Vê-lo tremendo, chorando e fugindo de pavor foi mais doloroso do que qualquer ferimento que eu já tenha experimentado. Reviver isso todas as noites, quando tento dormir, é aterrador.

 Condená-lo a uma vida de ódio, solidão e sofrimento nunca foi o que eu desejei, Shisui. Por Deus, nada era pra ter sido assim, eu juro que não! Mas era a única forma de que ele continuasse a ter alguma vida e alguma coisa em que se agarrar para levá-la adiante.

 Parte de mim fica aliviada por você não precisar passar por isso ou ver coisas tão horríveis. Você lutou bravamente até o fim e merece descansar, longe de qualquer dor. É o que eu gostaria de te desejar com toda a minha completude, juro. Eu estaria mentindo, porém, se dissesse que uma maldita parte egoísta de mim não te quisesse ao meu lado agora, como sempre apertando meu ombro com calma e garantindo que tudo acabaria bem.

 Só Deus sabe o quão desesperadamente eu preciso de você, Shisui. Agora, antes e sempre. Mas isso é impossível e, por mais que doa, eu tenho que aceitar de uma vez.

 Eu fiz coisas horríveis, Shisui. Eu não sinto que sou digno de perdão ou de amor. Eu não mereço seu céu e me dói saber que, muito provavelmente, nunca mais poderei segurar sua mão ou ver seu sorriso mais uma vez, mesmo depois do fim. O que eu fiz não me permite ir para onde você está agora e sinto que nada que eu fizer poderá mudar isso.

 Eu sinto a sua falta. Eu te amo com todas as minhas forças. Eu queria você aqui. Eu sinto muito que tudo tenha acontecido da forma como aconteceu. Aonde quer que você esteja, quero que saiba disso.

 Agora, infelizmente, eu tenho que ir. Afazeres desagradáveis me esperam em Amegakure. Prometo escrever mais vezes.

 Fique bem, viu? Eu também vou dar o meu melhor.

Com amor,

Itachi.

Dear ShisuiOnde histórias criam vida. Descubra agora