Capítulo Único

305 33 45
                                    

Aviso: contém sadomasoquismo.

x•x•x

A neve caía lentamente, ofuscando a visão de tudo a sua volta.

Ele desviou o olhar para as próprias mãos, a fim de assistir à gentil arte que os flocos de neve faziam contra a sua pele tão alva quanto mármore— seria uma sensação boa se não fosse o fato de não sentir absolutamente nada. A eternidade tinha um preço a se pagar e ele era alto.

Estalou a língua áspera contra o céu da boca e, em seguida, depositou as mãos dentro dos bolsos de seu sobretudo amarronzado, andando pelas vielas muito movimentadas de Paris, sem evitar de esbarrar contra algumas pessoas em seu caminho. Um leve suspiro escapou de seus lábios, seguido pelo direcionar das orbes acinzentadas para as inúmeras faces daqueles que corriam contra o tempo. Ele não via mais beleza.

Habitar em um corpo cadavérico não permitia que tivesse muitas sensações, mas ainda era possível admirar o mundo ao seu redor... E Levi fez disso a maior parte dos seus dias— gostava de escutar desde os sons das folhas que caíam com o mínimo aproximar do outono até os das valsas que tocavam naqueles pequenos cafés das inúmeras cidades nas quais habitara. Mas tudo foi perdendo a graça. Tornaram-se banais até as vidas, que Levi agora tirava sem culpa alguma. Já vivera por tanto tempo que não existia mais nada exótico o bastante para que chamasse a sua atenção.

Ele acreditava que, em algum ponto de sua miserável existência, ele havia amado o frio, amado a sensação da neve contra o seu rosto e amado a geometria dos flocos de gelo que caíam do céu como pétalas. Memórias vagas de invernos com sua família às vezes o faziam pensar que a chegada daquela época do ano era importante para ele, mas quase não tinha lembranças daqueles dias, então não podia afirmar nada com plenitude. Ele gostaria de se recordar do sentimento de que o sangue corria em suas veias, de que o seu coração pulsava em seu peito e de que suas bochechas conseguiam ganhar um pouco de cor.

Crispou os lábios, enquanto chutava as pequenas pedras soltas pelo seu caminho. Ele estava sem fome alguma, sem conseguir entender como nenhum pescoço parecia ser delicioso o suficiente para ser sua próxima refeição. Pegou um maço de cigarros malboro que havia conseguido com uma de suas últimas vítimas. Depois de um longo suspirar, acendeu um dos tubinhos e tragou-o profundamente, antes de notar a aglomeração de uma boa quantidade de gente na frente de um antigo teatro. Era a periferia de Paris, o local onde as pessoas pobres se escondiam como ratos no esgoto e aonde os olhos dos amantes da cidade das luzes não chegavam. Soltou a fumaça lentamente com o mesmo desinteresse anterior, contanto enxergava ali a possibilidade de alguma distração para, pelo menos, parte da noite e, se não desse certo, mataria alguém só por esporte.

Aproximou-se da multidão, embora já tivesse conseguido ler bem o nome do próximo espetáculo, o qual estava escrito com letra de bastão em um grande cartaz— Sussurros dos Mortos, nome o qual ele havia dado a uma de suas maiores tragédias em um ponto baixo de sua existência.

Balançou a cabeça em discordância. A juventude vivenciava uma decadência sem fim.

Como eles eram capazes de fazer uma apresentação tão ruim do, talvez, melhor trabalho de sua vida? Nem havia assistido ao espetáculo, mas já chegara à sua decisão final. Aquilo era uma afronta. Pelo que ele se recordava, foi durante o tempo da escrita de tal obra, entre seus trezentos e quinhentos anos, que ele percebeu que nada mais fazia sentido. Agora, nem a esse tipo de sentimento ele se rendia. Seu corpo era como uma casca seca, vazio e inexpressivo. Levi estava viciado na solidão. Apaixonado pela tristeza.

Apagou o cigarro a contragosto, atirando-o no chão e pisoteando-o. Ele, recentemente, descobrira que nem fumar mais se podia em ambientes fechados.

Entre dentes e correntes- EreriOnde histórias criam vida. Descubra agora