Aquele dia quente de verão seria um dos melhores das minhas férias se não fosse por um problema: eu morri. De novo.
Dessa vez, foi um carro. Eu não o vi chegando, é claro, mais pelo fato de que a rua estava vazia quando eu comecei a atravessá-la do que por qualquer outra coisa. Mas ali estava ele, um sedã qualquer prateado saído do nada no momento exato em que eu me aproximava da calçada, vindo com velocidade em minha direção. Não deu tempo de desviar ou gritar por socorro, e para falar a verdade eu nem tentei; a essa altura do campeonato eu já sabia muito bem que aquilo não servia para muita coisa.
O carro me atingiu com força e me jogou para trás. Quase pude perceber o momento em que meus ossos estalaram e rangeram, uma adorável adição da minha imaginação que já gosta de colocar alguns elementos extras em toda morte minha. Mas, ah, eu senti dor, com toda certeza. Irradiando da área da minha cintura e alcançando todo o meu tronco, tão intensa que me fez arquejar, sem fôlego. Deus, por que tinha que doer tanto toda vez?
Deus não me respondeu, é claro. Os Encarregados não vinham tentando se comunicar com ele por tanto tempo por nada. Deus aparentemente não gosta de bater papo com ninguém, e muito menos com uma garota qualquer morrendo pela sabe-se lá qual vez.
Mas eu não pude evitar a sensação de frustração. E, quase escondida sob ela, a de medo.
E se eu morresse de verdade dessa vez?
Deixei o pensamento de lado porque, bem, eu não morri. E nem senti o impacto do meu corpo contra o chão. Quando dei por mim de novo, estava deitada em um colchão nada confortável e uma luz branca muito forte me cumprimentou quando abri os olhos. Quase sorri ao vê-la, mas meu humor não estava lá essas coisas, então me contentei em franzir a testa. Da primeira vez que eu morrera e encontrara aquela luz, achei que havia chegado ao além. Eu estava certa, claro. Aqui era o além. Só não era o além que eu tinha imaginado.
Uma voz aguda interrompeu meus pensamentos. "Valentina!"
Suspirei e encarei a luz branca da lâmpada acima da minha cabeça. Meu corpo formigava. "Olá, Jasmim."
"Vamos, se levante," a voz estridente de Jasmim continuou e senti suas mãos pequenas me segurando pelos ombros e me sentando com um puxão. Ali estava ela, pequena e magra, com um terninho azul-escuro com saia e os cabelos curtos pintados de uma mistura caótica de rosa e verde água. A maldita prancheta estava debaixo de seu braço direito e ela sorria. Claro que ela sorria. "Temos uma missão nova para você, e essa é bem simples, então você a fará sozinha. Uma chance de provar suas habilidades!"
Como se eu não estivesse provando minhas habilidades há mais de cinco anos, claro.
Soltei outro suspiro e me ajeitei no colchão, dando uma olhada rápida em volta. O quarto onde estávamos era enorme, eu sabia, mas havia uma cortina em volta da cama que o escondia de mim. Eu só conseguia ver as outras lâmpadas espalhadas pelo cômodo por cima dela e de vez em quando uma voz se fazia ouvir, vinda da direção das outras camas.
Aquele era o Dormitório. Onde, aliás, ninguém dormia.
"Quem dessa vez?" perguntei, jogando minhas pernas para fora da cama e pulando para o chão. Jasmim ainda sorria. Não consegui impedir uma careta. "Por que tão cedo, aliás? Vocês me chamaram aqui há menos de um mês. Eu tenho mais o que fazer do que ficar correndo atrás de mortos para vocês."
"Francisco Martins, 65 anos," respondeu Jasmim prontamente, checando em sua prancheta como se não tivesse ouvido nada além da minha primeira pergunta. "Morreu ontem de noite. Infarto. Desaparecido desde então, provavelmente se escondendo em alguma ruela por aí." Seu sorriso se alargou ainda mais. "Não faça caretas, Val! Essa será rápida, prometo. Estará de volta no Real antes que perceba que saiu de lá!"
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A Cidade Invertida
FantasyConto. Prólogo de um futuro projeto meu de fantasia urbana. Escrito para Marcela no Amigo Segreto do Chimeriane/Ápice de Pandora.