Tinta Dourada

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Era uma manhã de outono quando te conheci. Lembro-me de sorrir grato ao ver o céu limpo pela alvorada, era calmo e me fazia sentir aquela sensação gostosa do calor que a estação trazia. Peguei a jaqueta de couro surrada e arrumei a mochila nas costas logo após o café preto. Eu pressentia que aquele dia seria estonteante, como se meu âmago estivesse sussurrando que a aventura por vir fazia valer a pena sair cedo de casa. Flutuei até o canto vago na praça central. Não havia tantas pessoas naquele horário, as crianças faziam seu caminho para a escola dominical que ficava logo na esquina; adultos protegiam suas bolsas e andavam rapidamente de cabeça baixa evitando qualquer contato com o mundo exterior. E, então, notei você.

Um garoto de boina, fios castanhos e uma câmera na mão. Foi impossível não sentir ternura ao te observar fotografar as folhas caídas no chão, como se fosse a coisa mais preciosa que seus olhos tinham captado. apenas não sabia ainda que isso faz parte de ti, essa coisa única de ser incapaz de não ver beleza em algo. A princípio, fiquei assustado com as cócegas que meu estômago me causou quando seu olhar fitou o meu por longos segundos. Além de amendoado, seus olhos eram penetrantes. Você também estava sentindo?

Você invadiu meus sonhos e não houve uma aurora em que não desejei te ver; após uma semana devaneado com o seu sorriso, eu te reencontrei. Dessa vez, estava concentrado, quieto e parecia inerte em um mundo tão particular que sequer notou minha presença de primeira quando sentei ao seu lado no vagão do trem. Não ousei sequer tossir para despistar o bolo que minha garganta tramou, mas recebi seu oi. Sempre tão gentil. Fico rindo bobo pensando em como éramos jovens, você prestes a concluir o colégio e buscando uma vaga no transporte lotado de segunda e eu, um moço sonhador que vivia sujo de tinta tentando ganhar algum trocado fazendo algo que gostava. Nesse dia, eu apelidei sua pintinha do nariz, você disse que minhas bochechas eram fofas e eu não poderia estar mais curioso para mergulhar na imensidão de polaroids e tons cinzentos que era Kim Taehyung.

Cinza. De início, fiquei intrigado. Havia tantas outras cores vibrantes; já tínhamos até algumas televisões coloridas! Mas agora, sei o quanto combina contigo. Tão presente até mesmo no preto em branco, tão singular e confuso. Você é como uma tela para preencher, mas ao mesmo tempo já possui um tom perfeitamente único que se divide em diferentes contrastes. Não demorou tanto para que nossos encontros no trem ficassem frequentes e, por consequência, eu me apaixonasse por cada tonalidade de gris.

Minha mãe deixava eu ler Shakespeare, contudo a bagunça de emoções que a sua áurea causava em mim não podia ser descrita com um amontoado de palavras por mais bonitas e poéticas que elas soassem. Parecia magia. Eu tentei ler algum conto de fadas para achar alguma identificação que não fizesse meu coração preenchido soar tão insólito, porém só havia histórias sobre conexão entre homens e mulheres. Suspirei tristonho e a confusão me fez perder a fome no jantar, recusei a sopa e deitei-me na cama. Sabia desde então que não daria certo, vivemos em tempos difíceis para sonhadores e eu era um. Eu deveria contar para alguém? Estava receoso se os olhos de Yejin ainda iriam brilhar de orgulho por mim após falar sobre quem andava me tirando o sono. Meu âmago se contraiu pela possibilidade dela me achar esquisito e me julgar por isso. Por que sentir algo tão dócil me deixava angustiado? Afinal, não havia maldade; Kim Taehyung fazia Jeon Jeongguk sorrir e, Jeon Jeongguk fazia Kim Taehyung sorrir. O que há de feio em querer morar em um sorriso tão adorável quanto o seu, hyung? Penso, penso e não encontro nada.

Não encontro nada quando lembro do dia em que saltamos do trem naquela chuva e mesmo que meu guarda-chuva amarelo estivesse à disposição, preferimos nos molhar e sentir toda a descarga que as gotinhas mornas nos traziam. Você puxou minha mão e eu me perdi na vastidão de sensações que explodiram conforme seu sorriso crescia por nossa dança improvisada. Sequer nos importamos com um resfriado quando deitamos no asfalto frio de um beco distante e eu pude te beijar pela primeira vez para te aquecer de toda a friagem que a roupa encharcada trazia.

Não encontro nada quando lembro do dia em que você me fez perder toda a insegurança com o meu sorriso, cicatrizes e pintas quando me fotografou no campo afastado da cidade que fomos andando de bicicleta. Eu estava cansado, suado e sujo de tinta roxa, mas você pareceu tão encantado por mim que corei e não deixei de brilhar nem por um segundo para a lente da sua câmera. Depois de todas as poses engraçadas que eu tinha em mente para te fazer rir acabaram, nos aconchegamos na grama verdinha um do lado do outro e rimos tão felizes pela singela companhia de alguém amado.

Não encontro nada quando lembro da noite fria em que você invadiu meu quintal e bateu na minha janela. Senti tanto medo em ver seus olhos marejados me perguntando por que a sociedade tinha que ser tão cruel e injusta. Não havia respostas. Ainda não há uma. Porém, eu te abracei forte até juntar cada pedacinho do seu coração machucado e amornei ele com selares carinhosos na sua epiderme quente. Vimos o pôr do sol enquanto nossos mindinhos permaneciam grudados.

Não encontro nada quando lembro daquela tarde em que ficamos sozinhos na sua casa após o meu longo dia de trabalho e você me pediu para te pintar. Eu mal pude acreditar; havia desejado tanto ouvir aquele pedido de ti... Você, tão surpreendente, se despiu e eu soube que, por mais que tentasse usar todas as técnicas conhecidas até então, não conseguiria representar a magnitude e graça que você carrega. Sinceramente, você é extraordinário. Peguei o pincel mais delicado que tinha, misturei o branco com preto e tracei o homem mais lindo do mundo naquela tela. Entre toda aquela tinta cinzenta que marcava suas impecáveis curvas, imergi o pincel em áureo e coloquei em seu coração como um marco do nosso amor ali. Te preenchi com dourado para te deixar vazio depois.

Eu estou te deixando, Kim Taehyung.

Por mais que eu não veja nada além de puro sentimentalismo em todas as nossas memórias, eu te amo tão profundamente para te deixar bem. Não quero que seu futuro seja com olhares feios, feridas no rosto e infeliz ao meu lado. Não adianta vir me procurar, quando essa carta chegar, já estarei longe. Está ardendo como um inferno escrever isso e sequer ter tido seu abraço como despedida, mas eu sou covarde e não suportaria. Espero que me entenda, meu amor. Você levou todas as cores em mim e eu nunca irei me permitir dividir o vagão do trem com alguém. Eu preciso ir; eu preciso te deixar longe de mim e de todo o sofrimento que eu te causaria se pedisse sua mão.

Meu lado egoísta torce para que ainda goste do outono, porém anseio para que floresça na chegada da primavera e que essa pessoa te leve até a lua por mim. Não estou levando suas cores embora, na verdade, você me mostrou nuances que eu nunca havia cogitado sentir. Obrigado por cada especial momento em que te vi sorrir. Não quero te fazer chorar mais. Você não merece amar alguém com tantas limitações, entende? Não merecemos ter medo de andar de mãos dadas; de ir no drive-in juntos para dividir pipoca; de dizer "eu te amo" em público; dos nossos pais descobrirem; de amar. Grifei uma citação de William: tarde demais o conheci, por fim; cedo demais, sem conhecê-lo, amei-o profundamente. Amor. Sempre foi amor. E também, sempre será; meu coração dourado será eternamente seu, garoto cinza.

Atenciosamente, garoto com cheiro de tinta e bochechas fofas.

Deixe-me colorir os vagões cinzas do seu coraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora