Ele lembrava. Lembrava da dor que sentia antes, do sangue vermelho escarlate sujando suas roupas, do som de madeira se espatifando no chão e, principalmente, se lembrava do vazio.
Por um instante, tudo parecia ser apenas escuridão. Sua mente estava longe demais para sentir, mas algo nele lembrava de que os momentos bons não duravam para sempre.
Quando conseguiu abrir os olhos, viu o vermelho novamente. Aquilo o arrancou de seu estado soturno como um tapa e, quando tentou gritar, sua garganta reclamou da dor.
— Calma. — Uma voz muito conhecida lhe disse, e ele finalmente reconheceu o homem de cabelos vermelhos e olhos azuis que estava à frente dele.
Estavam sentados nas raízes de uma árvore à beira da estrada, com um cavalo de grande porte amarrado à ela. Já era noite.
Levou menos do que um segundo para ele finalmente compreender. A palavra que há pouco ouvira se transformou em sua mente, se agarrando a seu espírito e o forçando a respeitá-la. Sua respiração se acalmou, seus membros amoleceram e, por fim, ele adormeceu novamente.
...
Sua mente ainda estava turva quando conseguiu entreabrir os olhos. Seu corpo estava completamente adormecido, se recusando a responder qualquer ordem sua, mas os ouvidos continuavam a funcionar perfeitamente bem.
— Quanto tempo demorarão até Wardcast? — Era a voz de mais cedo novamente. Por mais que tentasse, não conseguia recordar o nome dele. Era como se algo o bloqueasse, impedindo-o de atravessar aquela porta no labirinto de memórias de sua mente.
Mesmo assim, sabia que nunca conseguiria esquecer seu rosto e nem o medo que sentia em sua presença.
— Trinta, talvez quarenta dias. — Cuspiu um outro homem. — O que vai querer que façamos com ele?
— Tranquem-no e não deixem ninguém ter contato com ele. Não vão querer vê-lo com raiva.
— E como vamos alimentá-lo? Desse jeito, vai chegar a Wardcast morto. — Um terceiro, talvez mais sensato dos três, se intrometeu na conversa.
— Quando vocês chegarem a Wardcast, isso se chegarem, vão ter sorte se ele tiver morrido. — Silêncio. — Mas, caso realmente esteja preocupado com o bem-estar desse demônio, não se preocupe, ele não vai morrer.
Caso seu corpo não estivesse daquela forma, ele sabia que teria gritado e lutado. Ele sabia que toda aquela dor que sentiu naquele momento não teria sido contida dentro dele. Havia algo naquela voz, algo profundo e intenso. Algo que o cativava, que o aprisionava e que o fazia tentar obedecer tudo que ele ordenava.
Então, tudo que ele quis naquele momento foi estar morto. Quis que sua existência deixasse de ser um fardo, quis deixar de ser um problema, mesmo que ele nem sequer se recordasse o motivo de ser um.
...
Algo o chamava, tinha certeza.
Quando abriu os olhos, estava certo de que algo chamava por ele. Algo complexo, incompreensível. Como uma voz que sussurrava dentro de sua alma, uma presença que o atraia infinitamente.
Se perguntou por quanto tempo havia ficado desacordado e ficou feliz por não estar sentindo o vazio que o perseguia quase sempre. Sua boca estava seca e sentia muita fome, como nunca sentira antes, mas se sentia de alguma forma fortalecido.
Ele precisava encontrar aquilo que o chamava, precisava encontrar aquilo que tanto o esperava.
Quando olhou em volta, percebeu estar em um quarto pequeno e mal-cuidado, mas que havia deixado passar algo muito importante; ele sentia como se o mundo em volta dele balançasse num ritmo constante e nauseante.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Um Sono de Dois Mil Anos
FantasyLocki acorda sem suas memórias enquanto era sequestrado e enviado para um outro continente. Após o navio em que estava naufragar, ele é resgatado por uma mulher fascinante e o retorno de suas memórias o coloca em um dilema.