A embarcação era pequena o suficiente para o viajante solitário cuidar e efetuar as manobras de vela e leme. Ele sentava de pernas abertas em um tamborete pequeno de madeira escura. No céu as nuvens ainda não recebiam contornos definidos. Estavam negrumes, de igual à cor da noite. O velho no convés, encarando a vastidão, sentiu seu cachimbo falhar e praguejou. O condensador estava entupido de novo. Ele deu batidelas na piteira com as pontas dos dedos e duas pequenas tragadas para desentupi-lo. Sentiu a fumaça tímida e densa adentrar sua boca e afrouxou o corpo novamente, encostando-se na cabine do piloto. Pousou a nuca na janela e encarou o céu mais profundamente. Fez algo que vai além do instinto, algo construído em sua jornada. Olhou para a lua e mediu sua altura. Então, buscou a nuvem mais alta, estudou sua cor e a comparou com a da nuvem mais distante no horizonte. Estimou ser por volta de cinco da manhã. Esticou as pernas em um alongamento lento e amplo e as encalcou com as mãos, sentindo seu tônus rígido acordar para o dia.
Começou seu ritual matutino como sempre o fizera. Levantou-se, buscou seu banjo dentro da cabine e sentou-se novamente no convés. Antes de começar a tocar, percorreu as pontas dos dedos na madeira, tamborilou e acariciou, como se acordasse de modo afável a música. Esfregou os nós dos dedos pelas cordas e lentamente afinou as tarraxas com a outra mão. Fez pequenos muxoxos com a boca, puxando um pouco do fumo e deixando a fumaça quase sólida acomodar-se em sua boca. Então tragou.
Encarou o céu por mais um pedaço e quando finalmente acomodava os dedos em um acorde, percebeu a fumaça azul exalada de seu cachimbo escurecer a um tom rubro. Travou a língua na boquilha do cachimbo, impedindo que mais fumaça adentrasse sua boca. Cutucou o fumo no fornilho, revirando as folhas secas como se raspa o brigadeiro queimado do fundo da panela. Acomodado na soleira da janela descansava um pequeno estojo de cerâmica, ele o abriu e pegou uma caixa de fósforo e a última trouxa de seda em seu interior. Abriu a trouxa sobre o colo, apanhou as folhas azuis que ela embrulhava e as pôs dentro do cachimbo, compactando-as apenas o suficiente, sem impedir o fumo de se aerar. Riscou um palito de fósforo e deixou sua cabeça queimar, só então alimentou o fogo do cachimbo. Deixou a cabeça queimar, pois ela impregna um gosto amargo na boca. Enfim, soltou a língua da boquilha e armou o acorde no banjo tenor. Tocou.
As notas saíram leves de começo, lentas como o despertar de um sono cômodo. Ele acostumava os dedos ao banjo, enquanto ditava a cadência como a indecisão do despertar. Um ciclo de ritmos rápidos e lentos, enquanto a música se espreguiçava e saía pela boca do banjo, ela era como uma jovem leve e calorosa.
O velho fitava o horizonte enquanto o Sol nascia a bombordo, iluminando as nuvens e trocando a cor do céu. À medida que a luz deu textura às nuvens antes chapadas, ele passou a dedilhar. Seus dedos percorriam as casas, arranhando as cordas de aço, enquanto a outra mão se entrelaçava com elas. Quando o céu se tornou plenamente azul, seu ritmo já se tornara atropelado, com os dedos rápidos se cruzando e produzindo timbres tenores dançantes. A música estava acordada, finalmente, e rodopiava leve pela embarcação. Ela chamou o vento para dançar no convés e ele a acompanhou, sibilava em seus ouvidos como se cantasse junto ao banjo e enrolava-se em seu corpo como um amante. Percebendo a animosidade do vento, o velho continuou a tocar.
Não se contentou com o vento, pois precisava ver o céu também dançar. Levantou-se da cadeira e rodopiou no ritmo da melodia, seu cabelo branco esvoaçou enquanto caminhava para a proa. Recostou-se no parapeito do barco e acelerou ainda mais as notas da canção com espontaneidade. A música correu livre pelo convés. Podia se ouvir seus passos junto aos do vento que a seguira. O casal colou um ao outro, e o céu olhou com ciúmes aos dois, queria se juntar, mas estava longe e não sabia dançar. O velho viu o céu de canto e percebeu sua vontade, pois o conhecia muito bem. Sabia que tinha conseguido chamar a sua atenção e o capturar para seu jogo.
Então foi diminuindo o ritmo devagar até quase não escutar o próprio dedilhado. Ele ficou olhando para o vento e para o céu. A música foi parando, parando, até que o vento também assim fizera. Ela posava em um vestido branco, curto, solto e atrevido que deixava o vento e o céu na expectativa de ver um pouco mais de sua melodia por baixo da roupa. O vento pensou em soprar e levantar o vestido. O céu pensou em mandar o sol iluminar mais o seu rosto. Mas não fizeram, pois seus olhares expectantes cruzaram com o senhor no convés. Ele os fitava com um tom altivo de posse, como um pai que resguardava sua filha. O velho escorou o banjo no barco e a música correu para dentro do instrumento, envergonhada. Ele deixou o silêncio crescer, cultivando a ansiedade nos dois pretendentes de sua música. Então, o velho tragou mais uma vez o fumo e soltou a fumaça em direção aos dois, ríspido e consciente de que comandava a situação. O seu olhar deixou claro o que queria e o que eles deviam lhe dar. Eles se apresentaram e devolveram o olhar, mas com cuidado para não o desafiar. O vento aceitou a proposta e o céu assentiu, consideraram que era uma barganha justa. Era justa, pois o vento e o céu não subestimaram o senhor e não fingiram ser o que não eram. O velho esperou que fizessem sua parte da barganha.
Então, o céu abriu as nuvens como uma cortina e mostrou uma ilha distante, e o vento soprou as velas do barco inflando-as como um balão. O velho sorriu largamente, satisfeito. Então, virou o leme e aprumou o barco na direção da ilha, sentou-se em seu tamborete e esperou adentrar a cortina de nuvens. Enquanto as nuvens ladeavam o barco, pegou o violão e aguardou o vento e o céu chegarem mais perto. O céu desceu pelas nuvens e o vento soprou-se. Quando se acomodaram, ele tocou. A música, dessa vez, saiu carnal e desnuda do instrumento. Ela ensinou ao céu como dançar. Devassa, pôs suas mãos em sua cintura e seu rosto junto ao seu. O vento percorreu a sua pele macia e os três dançaram uma melodia forte e selvagem, veloz e lasciva, enquanto o velho cantarolava e rodopiava pela embarcação. Ele acelerava mais e mais o ritmo de sua canção, contente. E foi assim até a embarcação atracar, porque o saltilho moldou a barganha a seus gostos, como sempre faz.
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O saltilho
FantasíaCuidado, pois os saltilhos podem chegar a qualquer momento na sua ilha. Não que sejam bestas perigosas e assustadoras, por mais que talvez sejam. É só que necessita delicadeza no modo de os tratar, afinal você não deseja perder uma barganha com ele...