Você e eu

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O fogo da lareira queimava incessantemente, espalhava o calor pela casa fazendo com que a sensação de ter os pés congelados fosse uma memória distante. Luan e a senhora se saciaram com uma sopa de legumes fumegante, os seus corpos voltavam a vida. Enquanto era levado para um quarto, o homem reparou num corredor escuro de onde provinha um vento frio, no entanto, ele estava cansado demais para prestar atenção e simplesmente seguiu a velha. 

 Ela abriu a porta e desejou-lhe uma boa noite. Ele fechou a porta e deixou-se cair na cama. O sono chegou sorrateiramente levando as suas preocupações embora e dentro de segundos a sua respiração se tornou tranquila. Isso não durou muito porque aquele pesadelo voltou a lhe assombrar.

Amon estava coberto de trevas e escuridão, os seus olhos reluziam e perseguiam-no incitando-o a fugir, mas ele não conseguia correr nem tampouco gritar, a paralisia irritava-o a muito, mas ele não conseguia se livrar dela. Era o mesmo pesadelo, mas algo parecia diferente.

— Chegaste — riu Amon enquanto estendia o braço para trás — Vês? Aquela é a resposta.

Luan olhou para o lugar que o assassino apontava, mas nada viu além de escuridão e então ele levantou-se num solavanco, assustado com o suor a cair pela testa. A primeira coisa que viu foi um caderno escondido na prateleira cheia de livros. Era como se o próprio Amon estivesse apontando para aquela direção. Ele, ainda com a respiração acelerada, pegou o caderno maltrapilho e começou a passar as paginas. Elas estavam com manchas de lágrimas, cheias de sangue e rasgadas. Então, como se estivesse enfeitiçado, Luan começou a ler.

13 de março de 1025

  Eu sei que derramar as minhas frustrações nestas páginas não muda nada, mas o que mais eu poderia fazer? Ele persegue-me dia e noite, sinto que vou enlouquecer... Eu... Eu estou assustada. Ele chegou ao ponto de ameaçar a minha família! O que eu posso fazer?

...

26 de abril de 1025

Sinceramente, eu estou cansada. Pensar que apenas dois meses atrás eu achava estar no paraíso. Eu achei que havia encontrado o amor da minha vida, mas eu não sabia que por trás daqueles gestos cavalheirescos existia um monstro frio, possessivo e cruel. Eu estava nas nuvens e subitamente caí no fogo do inferno. 

Pensei que recusa-lo seria o suficiente, mas eu fui muito ingénua. Ele traiçoeiramente afastou a todos de mim, e sem que eu pudesse perceber, ele matou cada um deles. Eu encontrei os seus corpos sendo devorados pelos animais, estavam todos em cavernas e buracos fundos na montanha. E, além disso, os seus corpos não tinham cabeça. Eu...

As palavras que se seguiam estavam borradas pelo que pareciam lágrimas e muitas paginas haviam sido arrancadas.

30 de junho de 1025

 Já se passou muito tempo desde que escrevi, peço desculpa por tê-lo deixado tão sozinho, meu querido diário. No momento situo-me numa vila ao norte de Lanker, estou muito longe da minha cidade natal. Está muito quente, os mosquitos ficam a zanzar por todo lado.

 Estou sozinha pela primeira vez em minha vida. Quando penso que todos aqueles que amo estão mortos o meu peito dói e as lagrimas caem. Isto tudo é a minha culpa. Eu nunca deveria tê-lo conhecido. Se eu não tivesse ido para aquele maldito jardim isso não teria acontecido.

 Diariamente quando eu vejo uma flor eu canto aquela música, a canção que alguém muito sábio me ensinou. Canto a espera que eles não estejam com dor, canto a espera que eles tenham encontrado o caminho do paraíso. Isso é tudo o que eu posso fazer. A mesma música que eu cantava enquanto jogava terra por cima de seus corpos, a mesma música que eu cantava enquanto tentava buscar esperança no amanhã.

AbstraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora