Em 1022, o rei Roberto da França presidiu à primeira execução por heresia na
Idade Média. Durante o julgamento, uma enorme multidão reuniu-se diante do
palácio episcopal de Orleans e só a muito custo foi impedida de trucidar os
hereges antes que estes pudessem ser formalmente condenados e queimados na
fogueira. Esses acontecimentos em Orleans são dignos de registro. Em primeiro lugar,
após muitos séculos de escassas notícias de heresia, eis que surge um
considerável grupo de heréticos no norte da França, sem quaisquer
antecedentes. Em segundo lugar, o julgamento deles atraiu a atenção do rei e
da rainha. Em terceiro lugar, a vasta multidão composta por gente comum
ficou a tal ponto enfurecida pela heresia que tentou assassinar os acusados. Em
quarto lugar, alegou-se que os hereges acreditavam em doutrinas impregnadas
de dualismo, que assim ressurgia com uma intensidade desconhecida na
Europa Ocidental há mais de 400 anos – o antigo conflito cósmico entre luz e
trevas, espírito e carne, Bem e Mal, tinha agora reaparecido. Finalmente, os
hereges eram acusados de crenças e práticas que, pela primeira vez,
assemelhavam-se àquelas alegadas para acossar as bruxas, no auge da perseguição. Fossem as acusações válidas ou não, as ideias essenciais da
bruxaria histórica estavam agora reunidas pela primeira vez num julgamento
por heresia.
Os heréticos de Orleans foram acusados de realizar orgias sexuais noturnas
em lugares secretos, subterrâneos ou abandonados. Os membros do grupo
compareciam carregando archotes e recitando os nomes de demônios até surgir
um espírito maléfico. Os archotes eram então apagados e cada participante
agarrava a pessoa mais próxima num amplexo sexual, fosse ela mãe, irmã ou
freira. As crianças concebidas nas orgias eram queimadas oito dias após o
nascimento (um grotesco eco da prática batismal cristã), e suas cinzas
preparadas para compor uma substância a ser usada em uma paródia blasfema
da sagrada comunhão.
Os hereges eram acusados de acreditar que, quando imbuídos do Espírito
Santo, tinham visões angelicais e eram transportados de um lugar para outro
sem intervalo de tempo; de adorar o Diabo e render-lhe homenagem – ele
aparecia-lhes na forma de um animal, de um anjo de luz ou de um homem
negro –; de recitar uma litania de demônios; de renunciar formalmente a Cristo
e profanar o crucifixo. De todas essas acusações de bruxaria, as mais significativas são as de orgias
sexuais, sacrifício de seres humanos, especialmente crianças, e canibalismo.
Todas essas acusações são antigas. Os sírios fizeram-nas contra os judeus, os
romanos contra os cristãos e os cristãos contra os gnósticos. Agora eram feitas
contra os heréticos medievais. Uma longa sucessão de julgamentos por heresia
tomou por base as acusações formuladas em Orleans, e nos séculos XIV e XV os
excessos licenciosos e orgíacos eram alegados com tanta frequência que a
transição da perseguição por heresia para a caça às bruxas ocorreu quase sem
dificuldades. A razão pela qual essas antigas acusações voltaram à tona em 1022
foi porque os hereges de Orleans foram acusados de sustentar doutrinas
eivadas de dualismo. Nem todos os primeiros heréticos foram acusados pelos
cristãos de orgia e outros crimes rituais. Somente os gnósticos, herdeiros do
dualismo religioso, foram assim estigmatizados, mas com o declínio do
gnosticismo, as acusações desapareceram. Agora, porém, o retorno do
dualismo à cena europeia revivia e ampliava as acusações, até tornar-se uma
parte central da heresia e da bruxaria.
O dualismo extremo tinha começado no antigo Irã, como já vimos (p. 45); foi
transmitido aos gnósticos e maniqueístas e penetrou nos Bálcãs, onde se tornou
a base da religião dos bogomilos búlgaros e bósnios. Mas o próprio cristianismo
era uma religião semidualista; e em seu zelo de reforma e pureza espiritual, as
heresias dos séculos XI e XII enfatizaram de tal forma esse dualismo inerente
ao cristianismo que suas concepções pareceram gnósticas aos olhos dos
ortodoxos. Assim, quando estes condenaram os hereges em Orleans,
dispensaram-lhes termos semelhantes àqueles usados pela patrística contra os
gnósticos.
Posteriormente, pouco mais de um século depois dos julgamentos de Orleans,
os bogomilos enviaram missionários à Europa Ocidental. A partir da década de
1140, as ideias bogomilianas mesclaram-se ao dualismo já existente para
produzir uma nova heresia denominada catarismo, “a religião dos puros”. O
catarismo era uma religião fortemente dualista, uma vez que enfatizava o poder
diabólico no mundo. Os cátaros pregavam que o Espírito do Mal, o Diabo, criou
o mundo material com o propósito de aprisionar o espírito, ou a alma humana,
na matéria (corpo). Como o Deus do Antigo Testamento criou o mundo
material, ele é o Espírito do Mal. O verdadeiro Deus, o Deus do Bem e da Luz,
está escondido e distante deste mundo. Todos os personagens do Antigo
Testamento são demônios, seguidores do Espírito do Mal e das trevas que
governam o mundo. Cristo era o puro espírito enviado pelo Deus bom e oculto para ensinar à humanidade como escapar da matéria na qual os homens estão
confinados. Como a matéria é ruim, Cristo era puro espírito, e seu corpo uma
ilusão; Ele não chegou a ser verdadeiramente humano. Sendo puro espírito, não
sofreu realmente na cruz, e a cruz deve ser desprezada como símbolo de uma
mentira. O pior dos pecados é a procriação, uma vez que a concepção aprisiona
um outro espírito individual no corpo. A Igreja Católica foi estabelecida pelo
Diabo a fim de iludir o povo, mas um indivíduo pode livrar-se da escravidão da
matéria obedecendo aos ensinamentos cátaros.