Um Quadro da Vida

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     Bianca espalhou todos os presentes que recebeu em cima da cama: um liquidificador, um par de canecas com temática de noivos apaixonados, um jogo de panos de prato com galinhas petit poá bordadas e, dentre outros facilitadores da vida doméstica, aquele estranho quadro de vidro com borboletas coloridas. Não achou graça em pensar que aqueles serzinhos morreram para embelezar algum canto da casa. Forçou-se a pensar que foram feitas de papel, tão bem desenhadas que pareciam de verdade. Animou-se e pregou o quadro na parede, orgulhosa de seu primeiro ato decorativo na casa onde passaria a morar junto com o futuro marido, com quem já namorava há 2 longos anos.

     Tudo caminhava conforme o esperado, todos os atos e fatos jurídicos do casamento meticulosamente programados e tudo fluindo: o bolo, as lembrancinhas, o jantar, o vestido, os ensaios das danças bregas, o brinde e até o latim do padre. A mobília, agendada para ser entregue no novo endereço dos pombinhos; os convites, todos enviados; a noivinha, essa também ensaiou várias vezes o novo trajeto casa-trabalho-casa, nas modalidades a pé, de carro e com transporte público. A moça também já sabia onde faria compras de mercado da semana, do mês e até do ano. Nossa heroína romântica também já havia se projetado anos-luz e anteviu até os seus bisnetos, sendo capaz de adivinhar a cor dos seus cabelos. Pronto! Só faltava consumar aquele sonho minuciosamente arquitetado e feliz.

      A véspera do grande dia chegou! Bianca amanheceu tranquila, o que julgou ser um bom sinal, o prenúncio de uma bênção. O telefone tocou. Era a loja de móveis querendo entregar a mesa que encomendou para a vida nova. A noiva já estava saindo do novo apartamento quando seu transtorno obsessivo compulsivo lhe ordenou voltar e dar uma olhada no quarto do casal, onde pusera o quadro das borboletas. Abriu as janelas e sentou-se na cama. Uma corrente de ar entrou no quarto e o quadro balançou, em seguida caiu no chão, quebrando a metade do vidro e junto, sua vida toda direita. Bianca mal podia acreditar no que via! As borboletas começaram a sair do quadro, uma a uma, voando para fora da janela. Como assim? Eram mesmo verdadeiras! E vivas! Por quanto tempo viveram ali, graciosas por fora, amassadas por dentro?! Como sobreviveram?! Que loucura! O que isso queria dizer? Como poderiam viver paralisadas e mudas? Correu para a janela e conseguiu ainda vê-las entrando nas copas das árvores, para depois perderem-se de vista. Esperou, olhando para fora da janela, que alguma piedosa borboleta lhe explicasse aquele surto, o que não aconteceu.

 Esperou, olhando para fora da janela, que alguma piedosa borboleta lhe explicasse aquele surto, o que não aconteceu

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      O mundo pausou. Bianca pensou que estivesse saindo de si mesma, como as lagartas fazem. Saiu de seu casulo de mulher reprimida. Suas roupas a apertavam, seu desconforto crescia à medida que uma terrível ideia se fixava nela: não poderia se casar! Aquelas borboletas loucas não paravam de bater as asas em seu pensamento e pareciam alertá-la do perigo de se entregar a uma vida a dois, naquele momento em que ela não tinha a sua parte para somar. Bianca descobriu não saber se amava o futuro marido. Por que passou meses programando cada detalhe daquela maldita cerimônia? Percebeu que o sol pediu a lua em casamento, mas a lua aceitou em sua fase minguante e agora se via cheia de tudo! A ficha só caiu junto com os estilhaços do vidro do quadro.

      Lembrou-se de quando era criança e como se decepcionava com as bonecas que ganhava de presente, todas tão lindamente enfadonhas; os olhares das amigas estranhando suas incursões nas conversas sobre astronomia com um ou outro esquisito nas festas, enquanto a maioria beirava o coma alcoólico. Percebeu como suas asas foram tolhidas ao longo de sua existência. Como era difícil ser ela mesma, sem dogma, sem roupagem, mulher, forte, fraca, doce, amarga, simplesmente deixou-se levar até... o altar. Não! Não mais!

      Difícil descrever o que se passou com aquele casal naquele dia. Como foi dolorido o que se ouviu e o que se disse. Louça quebrada, coração partido, sonhos destruídos, filhos abortados antes da concepção, batalha perdida antes da luta, ressentimentos e aquele vazio que brota quando tudo termina, beirando o apocalipse. O ex-futuro marido ainda conseguiu desejar que Bianca encontrasse sua felicidade, o coitado! Despediram-se e, ocos, voltaram para os seus lares, cada um carregando sua bigorna de frustração. A ex-noiva, atordoada, nem percebeu que foi parar na portaria do prédio onde moraria com o pobre homem.

      Desaprender tudo aquilo levaria um tempo, mas Bianca precisou fazer o que era preciso e estava disposta a conhecer a única vida que se despia na sua frente. Sentiu esperança ao imaginar como se apresentaria ao mundo dali para frente: "Muito prazer, meu nome é Bianca e não gosto de cerimônias vazias! Gosto de fazer trajetos diferente até o trabalho para não viciar o olhar. E não me presenteie com canecas com temáticas bregas, por favor...". Respirou fundo e olhou para cima. Viu a janela do ex-futuro quarto aberta e resolveu subir para fechá-la, já que estava mesmo com a chave do apartamento.

      Ao entrar no quarto, sentiu um calafrio ao ver aquele quadro quebrado e vazio no chão. Quando se aproximou da janela, um barulho ensurdecedor veio de fora. Uma nuvem de insetos entrou pela janela, desviando-se de Bianca apenas o suficiente para conseguir entrar no quarto. Ela virou-se e viu o pequeno exército de borboletas voltarem para dentro do quadro de vidro quebrado. Cada uma assumiu a sua posição naquele espaço de fundo branco e frio, e congelou-se nas posições às quais lhe estavam reservadas. Notou que algumas não retornaram, obedecendo à lei do movimento e transformação. Mas chorou pelas que resolveram ficar, doeu-lhe o espírito ver aquelas formas tão belas e libertárias, de curvas e tons tão diversos e brilhantes, mas que ainda pensavam como larvas que não fizeram a metamorfose completa.



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