JUNGKOOK-
Acho que a Coreia do Sul estava vazando.Passava da meia-noite e continuava fazendo 37 graus. Uma espécie de suor da cidade escorria pelas falhas da calçada, emitindo arco-íris formados por peças de óleo sob a luz dos postes. Algo escorria do lixo amontoado na frente dos restaurantes do bairro indiano ㅡ sobras de curry transformando-se em chorume. No dia seguinte, os brilhantes sacos plásticos exalariam um cheiro incrivelmente repugnante, mas, ao passar por lá naquela noite, eu ainda podia sentir os aromas de açafrão e de arroz recém-descartado.
As pessoas também suavam: rostos reluzentes e cabelos desarrumados, como se estivessem acabado de sair do chuveiro. Olhos perdidos, e celulares balançando sem rumo, presos aos pulsos dos donos, refletindo de leve as luzes e tocando esporadicamente um trecho de alguma música grudenta.
Eu estava voltando para casa, depois do ensaio com Namjoon. Como estava muito quente para compor qualquer coisa nova, só tínhamos praticado uns riffs, repetindo os mesmos quatro acordes milhares de vezes. Depois de uma hora, o riff havia sumido da minha cabeça, exatamente como acontece quando se repete uma palavra sem parar, até que ela perca o sentido. Depois de um tempo, tudo que eu ouvia era o barulho dos dedos úmidos de Namjoon nas cordas e o amplificador chiando como um tubo de vapor, uma outra música se misturando à nossa.
Imaginávamos ser uma banda, se aquecendo no palco, animando a platéia gradualmente, antes de o vocalista entrar em cena: a Maior Introdução do Mundo. Acontece que não tínhamos um vocalista. Assim o riff simplesmente foi sumindo em meio aos rios de suor.
Às vezes pressinto quando algo importante vai ocorrer ㅡ quando vou arrebentar uma corda da guitarra, ou vou ser flagrado entrando em casa furtivamente, ou quando meus pais estão prestes a começar uma briga daquelas.
Por isso, momentos antes de a TV cair, levantei os olhos.
A mulher tinha vinte e poucos anos, cabelos ruivos como fogo e olhos manchados, com maquiagem escura escorrendo pelo rosto. Ela jogou uma televisão pela janela do terceiro andar: um modelo antigo, quadradão, acompanhado pelo fio comprido se agitando durante o mergulho até a calçada. A TV resvalou numa escada de incêndio, provocando um barulho agudo, engolido segundos depois pelo impacto no chão, a uns 5 metros de mim.
Uma chuva de estilhaços de vidro, brilhantes e afiados, caiu perto dos meus pés. Tilintavam como lustres se chocando enquanto os outros pedaços perdiam velocidade até parar. Fragmentos dos postes e do céu pareciam refletidos nos cacos de vidro, como se a televisão tivesse se dividido em mil telinhas, todas ainda funcionando. De uma lasca no formado de Manhatan, um dos meus próprios olhos me encarou. Arregalado e assustado, piscou.
A primeira coisa que fiz em seguida foi olhar para cima. Sabe, para o caso de todo mundo estar arremessando TVs da janela naquela noite, e eu precisar me esconder embaixo de um carro estacionado. Mas era só aquela mulher. E agora ela soltava longos gritos sem sentido e jogava mais coisas:
Almofadas com borlas. Bonecas e luminárias. Livros esvoaçando como pássaros em queda. Um pote cheio de canetas e lápis. Duas cadeiras vagabundas de madeira, despedaçadas na armação da janela primeiro, para passarem com mais facilidade. Um teclado de computador que lançou aos ares um monte de teclas e molas minúsculas. Talheres que reluziram durante a queda e tilintaram no chão como um triângulo para avisar que o jantar estava na mesa... um apartamento inteiro descartado através de uma única janela. A vida de uma pessoa à mostra na rua.
E, durante todo o tempo, ela gritava como um animal furioso lá em cima.
Olhei ao meu redor, para a multidão que se formava, a maioria voltando tarde do bairro indiano, entorpecida pelo curry. As expressões de enlevo nos rostos virados para cima me causavam inveja. Durante todo o tempo que eu tinha passado tocando com Namjoon, eu havia imaginado uma platéia como aquela: pasma e agitada, arrancada da mesmice do dia-a-dia pelas orelhas e pelos olhos. De repente, a mulher maluca, com cabelo e maquiagem de roqueira, os mantinham hipnotizados. Por que se preocupar com riffs e solos e letras, quando tudo que a multidão deseja é uma avalanche de berros e mobília barata destruída?
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Vampiros Na Coreia: O fim dos tempos
FanfictionA Coreia do sul está sendo assolada por uma doença estranha, que todos pressentem mas poucos conhecem de fato. Lixo se acumula nos becos, cada vez mais pessoas fogem da cidade e gatos estão sendo vistos acompanhados por bandos enormes de ratos. Aind...