Capítulo 1: fora de si.

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15/04/1819

Um dia frio. Seria agradável se a situação atual não fosse essa. Geralmente, quando estou de frente com minha lareira, tenho objetivo de aquecer o corpo, a mente e o coração. Todavia, estou pensando se devo ou não colocar a minha mão no fogo. A dor física me deixaria distraída? Faria com que eu parasse de pensar nela? A neve lá fora me impede de sair daqui, de correr, de fugir desta infeliz de uma vez por todas. Pensando bem... há realmente como fugir? Afinal, ela decide tudo, tudo! Eu não aguento mais.

Olho pela janela. Vejo a neve e sinto saudade de quando ela era branca, sem manchas vermelhas de sangue inocente e sem cadáveres usando-a como colchão. O céu acinzentado predomina, sem dar espaços para nuvens ou pássaros. Sou apenas eu, presa numa solidão que antes era desconhecida por mim. Todos se foram.

Por que escrever isso? Bom, se estás lendo, significa que estás aqui. E te peço... Se conseguir, saia, fuja desta cidade. Não deixes que ela consiga te manipular. Mas agora é a minha vez de adormecer na neve.

Com o coração apertado,

Adeus. 


02/03/2021

A caixa de correio possuía inúmeras contas pendentes, dentre elas a do meu novo computador. Hoje em dia, estudar decentemente custa caro, além dos equipamentos, como livros e aparelhos adequados, ainda há os pacotes de café em pó semanalmente comprados para me manter acordada nas madrugadas infernais. Entretanto, no meio daqueles envelopes padronizados, havia um diferente: rosado, com aparência desgastada e conservada ao mesmo tempo. Não havia remetente ou destinatário (pelo menos não visíveis) e possuía manchas avermelhadas de dedos nos cantos inferiores direitos, frente e verso. Parece ter sido tocado por alguém com mãos sujas de tinta vermelha. Ou de sangue, não sei. Com a curiosidade sussurrando no meu ouvido, largo todas as contas desleixadamente e corro apressadamente para dentro de casa. Está neblinando e faltou energia, então preciso ascender algumas velas envelhecidas que ficam no fundo de uma gaveta empoeirada.

A luz amarelada de uma das velas que coloquei em cima da mesa da cozinha ilumina sorrateiramente o papel com escrituras pretas e desbotadas. Preciso tomar cuidado para não o queimar, então faço a leitura com paciência e cautela. As letras são um pouco manchadas, mas a palavra "adeus" se destaca, como se alguém tivesse apagado um termo e reescrito este por cima.

Após ler, penso que não faz o menor sentido. Parece ser um trecho retirado de algum livro de terror, mas por que estaria na minha caixa de correios? Por aqui moram algumas crianças levadas, mas elas nunca mexeram comigo, não sou o tipo de vizinha sociável ou de aparência amigável. Além do mais é inverno, duvido bastante que os pais dessas pestes as deixem sair para badernar nesta época.

Não vou fingir que não estou assustada, mas preciso usar o lado racional do meu cérebro neste momento: a pessoa da carta fala para o leitor fugir de uma cidade, todavia ela não cita qual é. Além do mais, o fato de não ter remetente ou destinatário comprova a teoria de que é uma pegadinha, desde que deve ter sido posta manualmente e não pelos correios. Mas quem diabos perdeu tempo fazendo algo assim? É isso que eu ganho após um dia exaustivo de faculdade e trabalho: uma carta intimidadora de algum desocupado. Obrigada, universo, você realmente deve me odiar!

Amasso o papel e o envelope e arremesso ambos na lixeira. De repente, minha visão se ilumina: a energia voltou. Não sei se fico feliz ou triste. Por um lado, é bom poder enxergar decentemente, por outro, não terei uma desculpa para pedir um aumento no prazo do trabalho da faculdade. Vida de estudante é composta por decepções, lágrimas e olheiras.

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