Capítulo 4: vire-se.

13 2 0
                                    

13/03/1819

Ah... o cheiro das flores. Tão aconchegante para meu olfato... é sempre agradável vir ao parque passear entre todas estas belíssimas obras de Deus. São perfeitas, e mesmo que algum ser humano tente denegrir a imagem destas graciosas, elas jamais deixarão de ser esplêndidas a aqueles de olhos purificados, como eu.

Geralmente, não posso sair de casa para passear durante as tardes, porém, hoje meu marido resolveu dar uma brecha. Legal! Enquanto caminho com passos leves pelo gramado, mentalizo as histórias que leio antes de dormir, como "As viagens de Gulliver". O único problema em ler muito são as pessoas falando que mulheres não devem fazer isso. Me sinto triste, pois acho a sensação de entrar em lugares diferentes através de palavras alheias e de nossa estonteante imaginação algo tremendamente encantador.

De repente, sinto meu pé esbarrar em algo. O que será? Olho para o chão e encontro um objeto coberto de areia, então me agacho para pegá-lo. Isto é... aquele negócio... argh! A memória me falhou. Nunca havia visto um neste modelo. Na verdade, das vezes que observei este objeto foram com pessoas ricas, nunca tive um. Mas deste jeito... menos ainda. Parece estranho, todavia tão belo! Nele, há uma etiqueta presa com uma data. "02/03/2021".

2021? Daqui a 202 anos? O que isto quer dizer? Sinto-me confusa, com franqueza. Todavia, repentinamente passo a mentalizar o futuro. Minha mente possui uma imaginação valiosa. Haverá igualdade entre homens e mulheres? O preconceito contra a cor da pele será extinguido? Pessoas serão mais livres? As flores de primavera serão mais coloridas? E os alimentos? Inventarão novos deliciosos? Ahh... gostaria de visitar o futuro e ver se as pessoas serão mais felizes.

Bom, chega de devaneios. Acredito que não seja relevante o que acabei de encontrar, então levanto o olhar novamente em busca de ver a paisagem mais uma vez e continuar andando. Meus olhos arregalam por um instante, pois de maneira repentina, deparo-me com uma figura parada na linha reta que meus olhos percorrem, de costas para mim. Possui estatura baixa, e não consigo ver seu rosto, sequer suas costas efetivamente, por conta de sua vestimenta preta e peculiar. Acredito que o indivíduo não pisava nesse chão há poucos minutos, desde que não o vi. Acho que a melhor opção é voltar para casa... não confio em pessoas desconhecidas, e tenho medo de ser um homem ali.

Movo meu corpo na direção oposta em que a tal pessoa se encontra e solto o objeto que estava em minhas mãos no chão conforme me afasto.

PARE DE CAMINHAR.

Ouço uma voz...

Imediatamente, meu corpo pausa. Já não estou mais andando. A obedeci? Por que a obedeci?

VIRE-SE PARA MIM.

Estou gelada e arrepiada... sinto que não estou mais respirando como uma pessoa normal. Preciso rezar. Pai Nosso que estais nos Céus, santificado seja o vosso Nome, venha a nós o vosso Reino...VIRE-SE PARA MIM!

Minha mente pausa qualquer pensamento quando esta voz a invade de maneira depreciativa. Obedeço novamente, todavia, meu coração grita comigo ordenando que eu corra o mais rápido possível. Não posso obedecer a algo que desconheço! Deus, por misericórdia, ajude-me... Uma entidade pode ter invadido minha mente sem minha permissão! Não posso virar, não posso..., mas as circunstâncias mostram que não tenho escolha. É terrível não ter escolha. Que haja misericórdia.

Ao virar meu rosto completamente, mantenho-me surpresa com a imagem que vejo a minha frente. É uma...



??/03/2021

-Quanto tempo se passou desde nossa saída da minha casa? -Questiono Adelaide. Meu celular descarregou há alguns dias, então não há como saber o dia ou horário com exatidão.

-Infelizmente, Eliza, não sei informa-la... Perdão. Perdi as contas no sexto dia.

A fogueira nos aquece de maneira aconchegante. Depois do meu último "pesadelo", Adelaide vem me acolhendo frequentemente. Inclusive, eu, uma pessoa que costumava odiar contato físico, estou me entregando completamente nos abraços constantes da moça. De fato, estamos mais próximas depois desses dias que parecem nunca ter fim. Ela me contou mais um pouco sobre si, e parece ser uma pessoa muito forte. Não imagino onde ela viveu sua infância e adolescência, pois a mesma não deixa claro, e as características que ela dá sobre o lugar não me ajudam a descobrir qual é.

Apesar de eu ser uma pessoa fechada, também falo sobre mim. Já citei que muitas pessoas me confundem com mal humorada por conta das caras e bocas que faço em locais públicos, que sou estabanada a ponto de jogar uma colher no lixo e o papel do iogurte na pia, entre outras coisas. Enfim, conversamos bastante.

Adelaide trouxe consigo uma panelinha fofa e rústica, e a usamos para esquentar alguns alimentos que acabam ficando muito gelados por causa da neve. Enquanto a mulher fica de olho no fogo, resolvo cantar para deixar o clima mais leve. Ainda bem que tenho uma voz bonita, diferente de algumas vozes de cabrito de certas pessoas da minha turma. Mas... se bem que sinto falta até mesmo dessas pestes.

-But if you loved me, why'd you leave me? Take my body... take my body...

-Cantas tão encantadoramente... -Expressa a moça de voz adocicada. Pela primeira vez, a vejo sorrir genuinamente.

Nunca tinha reparado no quão lindo é este sorriso, seus dentes brancos são alinhados, e, apesar de os dois da frente serem um pouco afastados, ainda assim é perfeito. Na verdade, tudo nela é perfeito. Esta mulher é perfeita. Sua pele branca fica alaranjada facilmente por causa do fogo e suas bochechas e nariz, rosados por conta do frio. Sua postura elegante a deixa ainda mais bela, pois ela realiza cada tarefa com delicadeza e perfeição. Acima de sua boca desenhada, há um sinal preto, que adiciona um charme em seu rosto. Ela possui sardas caramelo nas bochechas, e... almejo tanto ver seus olhos, e não sei o porquê de desejar tanto...

-Eliza, acredito que esteja quente suficientemente. -Ela diz. Mas não presto atenção em suas palavras, apenas consigo olhar sua boca levemente carnuda e rosada.

Me pergunto o que estou fazendo... por que meu olhar não consegue ser desviado do rosto desta moça? Sinto ondas de impulso fazerem com que me aproxime dela lentamente, mantendo contato visual com seus lábios levemente abertos. Posso até não saber o quê ou porquê..., mas estou gostando. Toco o rosto de Adelaide, que aparenta estar confusa, porém seu repentino sorriso delata que ela está entregue ao momento na mesma medida.

O momento que senti nossos lábios tocarem causou um arrepio em toda a minha espinha e fez meu coração bater mais forte. O que diabos estou fazendo?

TU SABES EXATAMENTE O QUE FAZ.

-Eliza... -Adelaide se afasta repentinamente com uma das mãos na boca. -O que estás fazendo? Sou comprometida, isto é errado!

-Me perdoe, não sabia. Foi só o clima que foi meio propício. E foi só um beijo. Enfim, me desculpe.

Falo quase atropelando as palavras por conta do constrangimento. Acho que meu rosto está fervendo de tão vermelho. Argh, não devia ter feito isso. Como você é idiota, Eliza!

-Uhh... podemos nos alimentar? -Ela pergunta, com a voz séria.

Apenas faço um gesto de afirmação com a cabeça, pois sequer consigo expelir palavras sem me sentir extremamente constrangida.

Sob um silêncio matador, jantamos. A cada segundo que passo nesse clima estranho, tomo mais um xote mental de arrependimento por ter feito aquilo. Que ódio! Foi uma atitude desnecessária, Eliza. Você nem sabia se ela queria, e... estamos no meio de inúmeros mortos! O que tem na merda da sua cabeça pra você pensar que seria legal?!

Suspiro, de olhos fechados. Me odeio nesse momento.

Ugh...

Tá, já passou. Só preciso que esquecer e torcer para que Adelaide faça o mesmo.

Deito-me no chão, agoniada e pensativa. O dia foi imensamente cansativo, por isso, o cenário terrível e a ansiedade não conseguem ficar maior do que o meu sono. Enquanto tento ignorar o odor de sangue perto de mim, meus olhos pesam cada vez mais. A presença de Adelaide se encontra ao meu lado, mas resolvo a ignorar. 

Adormeço.

Os olhos que tudo veem.Onde histórias criam vida. Descubra agora