M’baidu estava curioso com aquela falha no céu. Nunca vira uma mancha tão escura contrastar com o azul pulsante do horizonte. E parecia haver algo além daquele borrão, quase imperceptível; algo que não conseguia distinguir.
Em instantes a linha desfocada sobre a cidadela de Gjamra poderia desaparecer, como nas tantas outras vezes que presenciara estranhezas sumirem repentinamente. Melhor seria permanecer com os olhares fixos acima. Algum registro suspeito proveniente daquela anomalia poderia render-lhe reconhecimento na região, ainda que fosse perigoso pensar desta forma.
M’baidu se julgava explorador dos céus, um observador. Desde a infância, se aventurava no Monte K’bha e insistia em observar as nuvens, as estrelas, o sol. O universo era seu fascínio, contradizendo o aprendizado religioso com que fora doutrinado.
Ficava horas a fio fazendo anotações sobre a transição da noite pro dia, cada movimento do sol, cada sublime tilintar das estrelas. Desenhava coordenadas, mapas. Media distâncias, aprimorava seu conhecimento astrológico. E notara, além do tal borrão desta tarde, que algo estava muito errado com a natureza que tanto propunha estudar.
Arregalou seus grandes olhos quase felinos e esticou suas pontiagudas orelhas como se quisesse escutar algum ruído além da fresta desfocada. Quando o borrão se tornou menos denso e mais disperso, pôde notar um tipo de luz, tão distante e aquém daquela fenda, brilhar intensamente. Foi quando, numa fração de segundos, um ser gigantesco, com pelagem esbranquiçada em torno de seu rosto, um par de olhos tão grandes quanto os teus – salvo às devidas proporções – e uma feição de admiração e espanto se aproximou por trás do esfumaçado risco nas alturas, observando-o, podendo notar seu cocuruto liso e sua cauda chacoalhante por debaixo de sua tanga surrada: M’baidu em uma bem sucedida epifania, tremendo como se estivesse no pior dos invernos e extremamente admirado pelo fato de ter visto Deus – como assim categorizou – pela primeira vez.
Rapidamente, a gigante divindade saiu de foco e as nuvens logo fizeram com que a tal fenda desaparecesse.
Ainda estava vidrado naquele ponto, agora menos luminoso devido às nuvens sorrateiras no céu, M’baidu estava em êxtase pelo que seus olhos acabaram de registrar. Sempre acreditara em um Deus soberano que zelasse pelos habitantes de Gjamra.
Sem pestanejar, quando se deu conta do que acabara de presenciar, disparou-se em direção à trilha próxima, quase saltando os pedregulhos a caminho do vilarejo. B’du, seu melhor amigo, tinha que saber o que ocorrera e, provavelmente, outras pessoas também tivessem visto o tal borrão, ainda que esperasse ter sido apenas ele o detentor dessa proeza.
Quando alcançou a cercania, berrou o nome do amigo, como sempre fazia quando avistava algo incomum nos céus:
— B’du! Eu vi Deus!
Era evidente, também, o fato de que os camponeses já estivessem acostumados com as aventuras de M’baidu no Monte K’bha e nada que ele dissesse surpreendia a alguém daquela comunidade desde a última vez em que relatou, com afinco, ter visto um inseto voador gigantesco sobrevoar incessante em torno do sol, mesmo que cultuassem a crença em divindades dessa categoria.
No entanto, havia um ancião que ditava algumas regras para o convívio em sociedade, baseadas no isolamento em torno de H’mkabu – a Montanha da Desolação –, uma grande cadeia montanhosa e extremamente alta que circundava Gjamra; proporcionada por um castigo enviado por W’koa, o Deus da Organização, após um insurgente local confrontar a sabedoria dos deuses. Este morador, entretanto, fora sacrificado e seu nome era considerado imperdoável pecado, uma afronta a W’koa se dito pelos reles mortais, fadados a receberem punições severas caso o pronunciassem. Para M’baidu, era a crença mais estúpida que jamais ousou contrariar.
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Missão Macro
Short StoryEm um mundo cercado pela Montanha da Desolação e sob crenças e maldições vive M'baidu, um curioso Elske que afirma ter visto Deus e, junto de seu amigo B'du, parte em busca de respostas para suas questões religiosas e suas teorias aparentemente absu...