Prólogo

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A primeira vez que desloquei, eu tinha por volta dos 13 anos.

Nunca esqueci da sensação estranha me inundando antes de escorregar para o estado de vigília do sono, segundos antes de perceber a escuridão tomar conta das bordas da minha visão, notando a vaga paisagem do meu quarto dobrar inteira e se transformar. Era como se uma força gigantesca e invisível conseguisse distorcer o ambiente e esmagar as paredes do quarto num pequeno fio, até se expandir novamente num local completamente novo. Parecia que alguém manipulava a realidade como um cubo rubik enorme, moldando para uma paisagem estranha surgir. Uma dimensão diferente e ao mesmo tempo parecida com a minha.

E eu já não era o mesmo, já não era humano.

Senti a musculatura do corpo vibrar de maneira nova. Meus ombros eram firmes e poderosos, existia uma potência em meus ouvidos, meu olfato... Demorou alguns segundos para que eu olhasse para baixo e percebesse um par de patas enormes, pretas, contrastando com uma fina camada de neve. Fechei os olhos e tentei me concentrar no restante do meu corpo, ter a percepção de que não era mais bípede.

A primeira certeza que me atingiu, foi que era um sonho. Eu estava sonhando e com certeza, era um dos sonhos onde há certa liberdade pra que você possa atuar da forma que quiser; e não aqueles sonhos usuais, onde as coisas simplesmente acontecem como se o indivíduo fosse um mero espectador. Isso realmente me agradou, fazendo com que abrisse os olhos novamente.

Com uma certa claridade incômoda, senti as pupilas adaptando rapidamente e definindo aos poucos o local onde me encontrava. Parecia um bosque de eucaliptos antigos e descascados, onde nevava com uma certa constância, adornando os pequenos arbustos que se acumulavam em pontos aleatórios. As altas árvores geravam uma sensação de infinitude, observando do ponto onde me encontrava. Era como se a floresta estivesse virgem, intocada pela ação humana, silenciosa e de uma aura pacífica, principalmente ao contemplar o leve cair dos flocos de neve. O cheiro da folhagem era forte, misturado com terra úmida, recém manipulada; e apenas o som de uma brisa leve preenchia o espaço, ecoando entre as copas curtas dos eucaliptos. Mas logo à frente, uma figura começava a se aproximar.

Não me movi, apesar do curto movimento para olhar minhas patas que havia feito anteriormente. Prendi minha visão no homem que se aproximava, devagar, desviando de forma sinuosa dos arbustos que acumulavam à frente. Era um senhor de uns 60 anos, com cabelos grisalhos que se juntavam de forma um pouco bagunçada nas laterais da cabeça, olhos castanho escuros, lábios e nariz fino, com uma barba grisalha por fazer. Tinha a feição de cansaço, mas carregava um semblante tranquilo e um sorriso no canto da boca. Usava uma camisa de manga, uma calça, ambas de linho, além de sandálias de couro bem simples. Parecia que o fato de estar nevando e com a temperatura negativa, em nada atingiam o homem; outro fator que me fez ter certeza de que se tratava de um sonho.

O mesmo suspirou profundamente, inclusive chegando a fechar os olhos durante o movimento. Voltou a me fitar e disse, com uma voz grave e firme, porém carregada de bondade:

- Chegou a hora de você aprender. Vou responder todas as suas perguntas com o tempo, tudo bem? No mais, seja bem-vindo. Seu trabalho será árduo, mas confio em você. Espero que confie em mim. – e sorriu abertamente, estendendo a mão casualmente, como quem pede a uma criança que acompanhe.

Por um momento não senti nada, além do tom grave do homem ecoando em meus ouvidos e preenchendo o ambiente. Ele parecia extremamente familiar, assim como toda a atmosfera onde eu me encontrava e, por isso, num movimento que não foi completamente coordenado por mim, movi a primeira pata para frente. 

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