Capítulo Único

400 47 50
                                    


As fêmeas illyrianas nunca iam a festas. Precavidas, mesmo as que viviam ao redor do Acampamento e se aventuravam no treinamento antiquado que só permitia a presença delas depois de uma quantidade excessiva de tarefas domésticas, preferiam não se aventurar nos perigos da presença de machos bêbados com moral inquestionável apenas em campo de batalha. Havia aquelas que não tinham escolhas. Sem um provedor de sustento, com o ideal de liberdade castrado por um povo primitivo, aventuravam-se, não por prazer, mas por obrigação; recebiam um lucro parco em prol da sobrevivência. Mas a maioria delas não iam a festas em Illyria.

Emerie não ia a festas em Illyria.

Mas estava em Velaris naquela noite. Os sons pareciam penetrar em sua pele e alcançarem os músculos, dançando dentro deles. A luz das estrelas parecia invadir a taberna de poucas janelas, habitando entre os copos de bebida, os corpos em movimento, as vozes elétricas. O próprio corpo habituava-se ao lugar, aos poucos lhe dando a sensação de pertencer àquelas paredes e a mesa parecia uma antiga relíquia de família, daquelas que se tem apreço. Família, naquele momento, não era um conceito que incluía o pai morto, o homem que Emerie se orgulhava de não sentir saudades. Incluía a mãe e o ideal protetor que o progenitor havia apagado cedo demais de sua vida. E suas amigas.

Valquírias.

Gwyn estava sentada à sua direita, no centro da mesa arredondada. Tinha os olhos vidrados nos movimentos dos demais, que dançavam e conversavam ao redor. Os ombros dela, outrora encolhidos, tinham um leve balançar que acompanhava a música. Nestha, na outra ponta, estava sentada no colo de Cassian. Mantinha a habitual neutralidade na face, aquela máscara de carne e osso que mantinha recluso o seu enorme coração, esta mesma que as duas outras tinham aprendido a decifrar. Emerie podia jurar que os pensamentos dela estavam entregues à música naquela hora.

Como uma confirmação do que havia imaginado, os olhos de Nes encontraram os seus. Num momento estava de pé, um sorriso pintado nos lábios, aquele que somente oferecia à família - a elas! - e ao parceiro. Ergueu a mão num convite.

— Ah, não... — Emmie negou com a cabeça, sentindo-se por um momento fora de órbita. Havia bebido mais do que o planejado — Eu não danço.

Afinal, não ia a festas.

— Você dança na arena de treinamento — Nestha tinha o argumento na ponta da língua.

— Está sugerindo que saque uma espada no meio do salão?

— Não aceito menos que uma estrela de oito pontas — e o sorriso da amiga aumentou em meio ao som espirituoso de suas palavras — Vamos. Eu guio você. Guio vocês duas — e olhou para Gwyn que, logo, se encolheu na cadeira.

Gwyn começava a experimentar o mundo só agora, depois do que lhe acontecera em Sangravah. Primeiro, o treino fora da biblioteca, no terraço da Casa da Cidade. Depois, à noite, junto das duas amigas na mesma casa, mas tudo isso ainda era um ambiente seguro para a Sacerdotisa. O maior passo fora o Acampamento Illyriano, no Rito de Sangue. Mas a escolha daquele passo fora arrancada dela, como tantas outras coisas. Não a taberna. Gwyn tomava as próprias decisões agora e, mesmo uma como aquela, uma dança, coisa tão pequena, era uma decisão dela. As amigas sabiam. Entendiam.

Dançar no meio de desconhecidos, ter mínimo contato corporal com estranhos, mesmo que acidentalmente....

Emerie e Nestha entendiam.

Cassian também entendia.

Tentou sorrir de forma descontraída, sacudindo uma das mãos na direção da pista de dança:

Corte de sol e estrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora