A jovem ficou horas ali, sem ver o tempo passar. Tomou mais algumas taças. Cantarolava com as cigarras, dançava com os vagalumes e saudava a Lua cheia. Gerônimo pulou a janela e ficou ao jardim observando com encanto a formosura daquela moça. Ele se sentia agraciado por tê-la como amiga. Cansou-se um pouco, pois havia tomado muito vinho, então deitou-se na grama e juntou as pálpebras para relaxar um pouco. Então sentiu um toque leve em sua testa, leve como uma pena. O odor agradável das árvores se intensificou e o chiar dos insetos parecia agora formar uma bela orquestra. Abriu os olhos como em um piscar e tentou apanhar aquela pena, mas não havia nada ali. Ouviu então a porta abrir, olhou para trás e era o rapaz que havia recém despertado. Rapidamente se recompôs, e sentou-se ao banquinho com seu amado gato no colo. O rapaz percebeu seu constrangimento e se desculpou.
–Imagine... Eu é que já estou um pouco zonza, acho que bebi demais. E perdão por não ter oferecido, você já havia adormecido.
– Tudo bem. Na verdade, eu não bebo. – Ele respondeu, cabisbaixo. – Na verdade, eu saí porque acordei no susto, de que talvez estivéssemos atrapalhando sua rotina no lar. E se for o caso, eu acordarei Helena e podemos retornar para casa. Mas... Devo alertar que é de extremo perigo você sondar a floresta a essas horas. Pois há seres que nela habitam, e não me refiro a animais ou plantas. Por favor, tome cuidado...
– Não estão atrapalhando, podem ficar enquanto quiserem. Com "criaturas" se refere às sereias? Tomarei cuidado. Mas até onde sei, não acho que sejam capazes de rodar a floresta... Não são seres d'água?
– Sim, estas são. Mas há outras criaturas da terra, do ar e do fogo. E são criaturas travessas, não dão perdão e não sentem empatia. Elas estão por todos os cantos. Eu mesmo nunca vi uma, só conheço as histórias. Meu falecido pai conhecera várias sereias, já minha mãe andava por aí com pequenos seres da terra, cujo nome não sei. Só sei que ela perdeu a sanidade. Digo a Helena que foi tudo culpa do meu pai, porque de certa maneira foi. Ela vinha à floresta pelas manhãs e comia cogumelos com estes seres, até que, aos poucos, as alucinações a acompanhavam dia e noite, todos os dias. Mas ela vinha porque em casa, meu pai nunca lhe deu amor, nunca foi um bom companheiro, e a solidão a deprimiu.
– Compreendo... – Quando ele disse seres da terra, lembrou quase que de imediato das risadinhas por entre as árvores mais cedo. Pensou consigo se aquela pena em sua testa também poderia ser a tal criatura do ar... Mas resolveu que não iria partilhar com ele suas visões. Apenas refletiu sobre a dor e tentou exibir algumas palavras de consolo. – Acho curioso como o amor pode trazer tantas mágoas como frutos. Não há felicidade sem o amor, mas também não há dor. É ele a causa das comédias, tragédias e epopeias. Nenhum sentimento se assemelha a ele. Todos querem ser amados, mas a maioria tem medo de amar. Eu acredito que seja ele a força que nos move dia após dia.
O rapaz era muito frio, e ficou sem graça com as palavras da jovem, apesar de tê-las achado muito sublimes. Por um lado, concordava, e por outro, não. Sentia que ele mesmo era movido pelo ódio ou pela necessidade, não fazia as coisas porque amava ou por quem amava, mas porque precisava. Os únicos reais amores em sua vida eram a doce Helena e a falecida mãe. Ele agora apenas sobrevivia, tentando dar tudo de si à irmã. Mas já não restava quase nada. Quanto mais se doava, mais perdia sua essência. Havia arranjado um emprego nas minas com o intuito de juntar algum dinheiro, para que bancasse uma viagem com a irmã à cidade. Ela sempre sonhou em sair da pequena vila, e ele era o único que podia ajudá-la. Os dois não tinham estudo, não tinham recursos e nem apoio dos pais. Helena era muito nova, e ele não a deixava trabalhar. Achava que a ingenuidade dela seria uma porta de entrada para empregadores mal intencionados ou pessoas perversas. E por um lado, estava certo.
– Pode ser... Não sei. – Francisco não sabia o que falar.
Atrás da porta, Helena escutava tudo em segredo, até que Gerônimo entrou na casa pulando pela janela e lhe deu um grande susto, levando-a a gritar. Os dois jovens no jardim logo entenderam e acharam graça. Mas então não falaram mais nada. A menina abriu a porta e perguntou ao irmão se iriam passar a noite lá. Ele olhou para Ofélia, que fez que sim com a cabeça e então a jovem anfitriã os dirigiu a um pequeno quarto dentro do chalé, onde havia uma cômoda e um aconchegante beliche.
– Vocês podem dormir aqui. Se quiserem se banhar, pego umas toalhas. Também tenho uma troca de roupas se quiser, Helena. Algo mais confortável para dormir. Infelizmente, acho que não tenho nada para o seu irmão.
– Não há problema... Na verdade um banho me cairia muito bem agora, se me permite... Eu posso dormir no chão caso não queira que eu suje o beliche com a imundice do meu traje.
– Por favor, não... Vou buscar suas toalhas, esperem.
Alguns minutos depois, ela voltou com duas toalhas no braço e uma panela com chá de alecrim, já morno.
– Banhem-se com um pouco deste chá. Além do cheiro muito gostoso, também vai ajudá-los nesse momento difícil.
– Muito obrigada... Iremos fazer isto. – respondeu Helena.
Depois do banho, Helena adormeceu rapidamente no colchão superior do beliche. Quando o rapaz saiu do banho, ainda envolto na toalha, olhou para as roupas sujas e se entristeceu. Ofélia viu em seu rosto sua dor. Ele havia demorado no banho, e parecia muito mais relaxado que antes. Mas agora, deveria voltar a vestir as roupas imundas. Ela então se compadeceu e teve uma ideia: iria buscar nas antigas roupas do pai que guardava de lembrança um pijama que ele pudesse vestir.
– Veja, pode vestir este. É bem confortável, pertencia ao meu pai e era seu favorito. Não se preocupe com as suas roupas, que irei lavar agora, e amanhã o Sol forte do verão as secará depressa. Pode ser?
– Moça... Muito obrigado, de coração. Você tem sido muito boa para mim e minha irmã... Como posso retribuir?
– Você não deve e nem precisa, agora vá deitar-se, que foi um dia cansativo, e dormir depois de um banho quente é muito gostoso. – Ofélia ficou encantada com a humildade daquele jovem, mas sentia que se continuasse a conversa naquele estado de embriaguez, se jogaria nua em seus braços a qualquer momento. E isso seria muito inconveniente de sua parte.
Ela foi então tomar o próprio banho e, enquanto a água morna escorria por seu corpo, começou a chorar. O que havia de errado com ela? Por que ela tinha de ser tão sozinha? Nem mesmo um irmão tinha em sua vida. Ontem, havia se apaixonado em um rapaz e hoje, noutro. Sua cabeça estava muito turbulenta e, mesmo sem ter feito nada de mau, se sentia culpada. Hipnotizou-se pela água da banheira, tão calma, fluida. Ela queria ser como a água. Terminou o banho e deitou-se, para acordar ao fim da manhã do dia seguinte, já que imaginou que os irmãos estariam muito cansados e, por isso, dormiriam muito.
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Ofélia
FantasyUma casinha de madeira no meio do mato, seus gatos e sua hortinha. Era disso que vivia Ofélia. Até que um acontecimento bizarro mudou o rumo de sua vida para sempre.