Introdução

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Não quero levantar. Quer dizer, não sei se quero ou se não quero. Mas eu sei que não consigo. Não consigo, meu corpo não se move. Só sinto o mover da minha respiração em meu peito, pesada. Inspiro tentando puxar alguma força para dentro de mim que me faça ao menos me mover. Pouco ar entra e eu já estou cheia. Me sinto tão cheia, e não é apenas de ar. Expiro desistente. Não tem energia que me tire daqui. Não tem força do além que possa me levantar. Inspiro e expiro com esse peito pesado e doloroso que agora me abriga. Não era assim. Eu me lembro muito bem de tempos em que meu coração era leve, minha respiração tranquila... Hoje em dia nem sei mais o que é respirar sem sentir que estou tentando quebrar pedras em meu próprio pulmão... Nem me reconheço mais. Ás lágrimas começam a sair involuntariamente, pouco a pouco. É aquele choro novamente. Aquele que vem com indiferença, que de repente molha minhas bochechas e enxarca meu travesseiro, mas eu nada sinto. Nada penso. Apenas choro. O choro vai enchendo meu corpo e eu sou um rio inteiro, parado demais, quieto demais, mas caudaloso, gigante. Só quem já se sentiu água parada sabe a dor que é. Não era assim. Eu me lembro muito bem quando eu chorava apenas de tristezas repentinas, acontecimentos específicos. Eu chorava, gritava, esperneava. Mas depois passava, como tudo costumava a passar. Mas esse choro não. Esse choro nunca vai embora. Mesmo quando eu não sinto mais o gosto salgado em minha boca seca. Mesmo quando o travesseiro já secou. Mesmo quando só me resta dor de cabeça e olhos vermelhos. Ainda assim eu sinto dentro o choro escorrendo. A água parada. Eu acho que eu penso demais. Estou há uma semana tentando terminar aquele relatório de trabalho, eu preciso me levantar e finalizar isso. Eu tenho obrigações para cumprir com meu chefe. E os textos? Ontem eu li apenas cinco! É pouco. Ainda é muito pouco! Eu penso demais e não produzo absolutamente nada! No que eu quero me tornar? Eu não tenho objetivos? Eu sei muito bem que preciso conquistar algum espaço naquela academia. Preciso mostrar minha imagem, preciso ser reconhecida. Quantas pessoas conseguem reconhecimento? Quantas pessoas conseguem uma imagem pública admirável se ficam assim deitadas na cama, paralisadas? Eu preciso me mover. Eu preciso chegar a algum lugar. Mas eu não consigo. Então eu volto a dormir.

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Sonhei com aquele bebê novamente. Aquele que se parece tanto comigo. As vezes eu acho que sou eu. Sonhei que corria atrás dela de novo, corria, corria, até que a perdia de vista. Sonhei que perdia o meu bebê novamente. A verdade é que há muito que eu perdi.
Sempre me nomeei bruxa. Mas me lembro muito bem o dia em que tive que provar a veracidade dessa identidade. Era um belo dia ensolarado, eu tinha apenas sete anos, mas andava cantarolando pelo condomínio com meu livro de magia na mão. A bruxaria deve fazer parte de mim desde o dia em que eu nasci, então não é a toa que tão cedo assim eu já havia providenciado ganhar um livro de bruxaria no Natal. Era perfeito, vinha com cristais, pó mágico, uma varinha e a história de vários feiticeiros, magos, bruxas... E lá estava eu naquele belo dia ensolarado passeando com meu livro mágico.
As crianças do condomínio não acreditavam muito em minha capacidade de fazer magia. Eu achava irônico como podiam assistir e ler tantos contos de fada, histórias fantasiosas (Harry Potter por exemplo) e simplesmente se recusarem a acreditar em magia. Mas eu nunca neguei quem eu sabia muito bem que era. Um dia as crianças ficaram tão furiosas comigo que me desafiaram. "Se você é bruxa, faz um feitiço então!"
Eu sinto que eu podia ter escolhido algo simples. Sei lá, um chá mágico, uma reza para fazer as pessoas rirem, uma canto para alegrar... Mas eu escolhi logo as forças da natureza e disse muito assertivamente "Vou fazer um feitiço para que comece a chover". Uma chuva de risadas chegou, isso sim. Mas eu não me acanhei, empunhei minha varinha mágica e conjurei um feitiço (um poema que criei ali na hora) para trazer a chuva.
E nada. Mais e mais chuvas de riso enquanto eu me sentia desolada com minha incapacidade de fazer magia. Será que eu não era bruxa? E se eu não fosse, será que ao menos existiam bruxas? Será que um dia eu conheceria uma? Ela podia até me ensinar a fazer um feitiço! Acho que o primeiro que eu escolheria seria como fazer chover...
Fiquei tão perdida nos meus pensamentos que não notei o meu livro encharcado. A chuva havia enfim chegado. Eu olhei para o céu descrente, boquiaberta. As crianças olhavam pra mim com apreço e desde então fiquei conhecida como bruxa entre todas elas. Mas agora não era mais uma ofensa.
Enquanto as crianças sorriam e se deliciavam com a notícia de que havia uma bruxa entre nós, eu olhava para o céu como se de lá de cima alguma divindade olhasse para mim também e sorrisse. Eu sorri de volta, mesmo não sabendo o quê ou quem era, eu senti ali que fazer magia estava além de mim e que havia muito, muito mistério ainda por ser descoberto. Uma lágrima caiu do meu rosto e misturado com a chuva que eu acabara de conjurar, foi devolvida a terra em agradecimento pelo que acabara de me acontecer. Há poucos dias me lembrei disso, uma memória por muito tempo adormecida.

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⏰ Última atualização: May 02, 2021 ⏰

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A bruxa que nos habitaOnde histórias criam vida. Descubra agora