Primeira parte - Confusão

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"Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o teu amor do que o vinho."

(Cantares de Salomão 1:2).


Ele ainda se lembrava nitidamente da primeira missa que celebrou depois de... Era difícil dizer — Céus, era difícil aceitar! — o que havia feito. Lembrava-se de estacionar quatro metros antes da igreja, de fazer o sinal da cruz quando pisou debaixo do teto sagrado, de manter os olhos baixos, incapaz de olhar na direção do altar e, principalmente, do Jesus crucificado.

Padre Flitwick — que celebrava as missas na parte da manhã — o cumprimentou e Snape o respondeu com um grunhido. O senhorzinho franziu o cenho, mas, por fim, decidiu ignorar, já que Padre Snape era conhecido por às vezes ter dias ruins. A maior bênção de Snape foi não ter cruzado, a princípio, com Madre Minerva. Não poderia olhá-la nos olhos, não... Não seria capaz sem que se sentisse o homem mais sujo da face da Terra.

Trancou-se na sacristia e lá permaneceu até que não pudesse mais adiar. Estava, pelo menos, sete minutos atrasado para a missa das 17h. Demorou porque perdera a noção do tempo enquanto rezava todas rezas que sabia, lia e relia os salmos que costumavam acalmá-lo e agarrava-se ao terço que deveria lhe trazer acalento. Além disso, precisou de coragem para vestir a batina, a estola, e quando o pingente de cruz do cordão caiu sobre seu peito, ele chorou.

Apesar disso, secou as lágrimas com raiva e respirou fundo. Quando deixou a sacristia, ele estava vestido com sua melhor máscara de amabilidade indiferente. Cumprimentou os fiéis já conhecidos, as beatas assíduas, Minerva, Neville e Luna. Felizmente, você não estava lá.

No microfone, sua voz permanecia inalterada, suas homilias continuaram sucintas e claras. Sentiu-se em paz pela primeira vez desde o desastre em sua cama. Aliás, o efeito do analgésico estava passando, e a dor nas suas costas começava a ressurgir: não era capaz de dormir na própria cama após o ato horrendo que cometera. O sofá estava sendo seu leito nos últimos dias.

Mas foi ali, pregando, vendo os rostos emocionados e devotos daquelas pessoas, toda a força da fé ao seu redor, as vestimentas no seu corpo, que pela primeira vez em dias ele se sentiu em paz. As palavras de Dumbledore jamais saíram de sua mente, e o que mais martelava dentro de si era: "Deus é bom, meu filho. Mas cabe a você decidir".

Não era uma decisão fácil. Não porque queria largar tudo e viver ao seu lado. Não, não era isso. Mas, porque, a vida dele toda era o sacerdócio, ele não tinha mais nada além disso. E ao mesmo tempo que não sabia se poderia ainda viver como padre sabendo da profanidade que cometera, também tinha medo de renunciar a batina e, ainda assim, viver em sofrimento e arrependimento. De qualquer forma, Snape sabia que aquilo jamais o abandonaria. Sendo assim, optou por continuar na paz do Senhor do que se entregar totalmente ao pecado.

Não deixaria você vencer. Não deixaria o Diabo triunfar sobre si.

. . .

Os dois primeiros meses foram de total medo e pacificidade para Snape. Ainda era difícil, ainda se sentia intimidado sempre que chegava à igreja — como se as imagens dos santos os julgassem, como se seus fiéis soubessem o que tinha feito — e ainda se deslocava para Hackbridge para se confessar com Monsenhor Dumbledore. Entretanto, conseguira voltar a dormir na própria cama, conseguia vestir a batina sem se sentir imundo, conseguia — graças a Deus — não sonhar com você e com o que fizeram, e, principalmente, conseguira se livrar daquele pedaço maldito de papel que continha o poema. Seu maior acalento, sem dúvidas, era o fato de não tê-la mais visto.

Ele sabia que você continuava indo até a igreja duas vezes por semana para administrar o grupo de leitura. Neville algumas vezes comentava que você ficava para as aulas de música também; os pais das crianças também às vezes o procuravam para elogiar a professora. Não havia dubiedade de que você era uma professora maravilhosa e que as crianças a adoravam, sem falar no trabalho belíssimo que vinha fazendo na formação daqueles jovens. Porém, qualquer menção do seu nome o desestabilizava e todo aquele temor e desejo quase o tomavam por inteiro novamente. Quase.

O Purgatório de Snape | ✓Onde histórias criam vida. Descubra agora