Memória ancestral

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Essas florestas são diferentes dos Pinheiros que conheço. As luzes estavam atravessando as árvores, com um calor que parecia aconchegante.

Caminho em meio a floresta e o som das águas do rio ficam cada vez mais próximas.
Chego mais próxima do rio e vejo uma mulher negra, de cabelos longos trançados, pronta para fazer um mergulho.

Levo um susto, quando vejo mais de perto. Aquela mulher era eu! Mas não era eu, tinha certeza disso.

O corpo dela era mais musculoso, parecia mais confiante de si, mais bonita, de alguma forma, diferente.

Ouço as folhas fazerem barulhos com o som do vento, mas senti que poderia ter uma pessoa se escondendo atrás de alguma árvore. Um frio na barriga veio quando pensei que poderia ser um homem perigoso.

Caminho em uma direção bem intimista tentando ver se podia ter alguém na espreita. Quando vejo é um belo homem, de pele branca, admirado com o que estava vendo no rio.

Ele tinha umas roupas diferentes, não pareciam ser de 2030, o ano em que estamos.

Ele começou a andar em direção ao rio para chegar perto da moça. O meu coração começou a ficar apertado, com medo do que poderia acontecer. Como eu poderia avisar a moça ? Ela se parecia tanto comigo. Será que era eu?! Como eu poderia avisar a mim mesma?

Um som parecendo de relógio começa a soar nos fundos. Tento correr para impedir o cafajeste de qualquer ação, mas quando dou o primeiro passo, meus olhos se abrem.

Era um pesadelo ou um sonho?

Que sonho estranho. Parecia mais um dejavu. Foi tão real que acordei soada, e com vontade de chorar por um longo tempo.

- Hagar estamos atrasados. Você já está pronta?

Pergunta meu pai Orum. Ele e mamãe são panafricanistas, mamãe se chama Amara. Nós participamos de um grupo chamado Sankofa, realizando reuniões todo mês para relembrar a importância de fortalecermos nossa comunidade negra, mesmo em meio aos atentados que temos tido. Hoje terá um encontro do grupo.

Moramos na cidade de Curitiba. Confesso que minha família me protegeu tanto, que sinto um pouco de medo do mundo, e ao mesmo tempo vontade de conhecer mais coisas diferentes.

Já ouvi relatos horríveis que aconteceram nessa cidade com pessoas do nosso povo. Outro dia, irmão Jorge desapareceu e não tiveram nenhuma pista dele, nosso grupo desde então tem feito buscas incansáveis para descobrir seu paradeiro, porque a polícia local pareceu nem se importar.

Eu estudo na escola da comunidade do nosso grupo que tem o mesmo nome: Sankofa. Tenho muitos amigos aqui, e me sinto tão acolhida!
A nossa escola é até o Ensino Fundamental II. Então esse ano terei que me mudar para uma escola diferente para fazer o Ensino Médio, uma etapa que será com pessoas brancas e princípios que são diferentes dos nossos.

A minha família está tão preocupada com isso. Mas eu sinceramente, estou ansiosa. Sinto que eles me colocaram tanto num casulo para me protegerem, que até músicas diferentes das nossas não conheço.
Quero ver o mundo com os meus próprios olhos, afinal já estou me tornando uma mulher adulta.

- Hagar, já estamos indo! Ande logo filha!

- Ok mamãe estou indo.

Agora é mamãe me chamando. Termino de dar os laços em meu turbante colorido, meu preferido de todos os 10 que tenho. Dou o último laço no vestido amarelo que vovó me deu, ele é simplesmente lindo, e saio do quarto, descendo as escadas. Papai e mamãe já estão abrindo a porta do carro.

Desço me sentindo uma princesa. Mas a cada passo que dou, sinto uma pontada no peito. Parecia insegurança, um medo de não mais poder me sentir assim, misturando-se com a sensação ruim que tive, ao relembrar do sonho.

Seria um sonho ancestral? Como isso seria possível?

As vezes, sinto que tenho outra face, nos meus sonhos, mas ainda não descobri o que poderia ser realmente.
Talvez o primeiro contato com essa face, tenha sido naquela floresta tropical, em meio as luzes calorosas de um clima vivido, apenas na memória.

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⏰ Última atualização: May 07, 2021 ⏰

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Amina e HagarOnde histórias criam vida. Descubra agora