Eu poderia lavar os instrumentos das experiências químicas ou espanar os grãos de poeira acumulados nos sistemas de refrigeração. Poderia até mesmo me humilhar no serviço dos engenheiros, alimentando as caldeiras do módulo com a substância e terminar o expediente fedendo a óleo. Mas o Mestre era um sujeito sem compaixão. Tinha que escolher a pior função dali para mim: lidar com a sujeira de outros humanos.
Eu havia sido designado à limpeza dos corredores de acesso aos lavatórios.
A vista estelar parecia destacar todo o resto metálico no chão endiabrado de sujo. Minhas mãos endurecidas de raiva passavam o esfregão sem muita coragem, e eu observava ocasionalmente aquela paisagem afora. Me dava uma sensação de estar faltando algo, em algum lugar...
Juro que eu tentava ignorar os comentários dos outros. Porque sabia que se me concentrasse neles, minhas horas nos serviços extras aumentariam. Eu era obrigado a escutar os burburinhos altamente chatos se prendendo como cola na minha cabeça.
— É o Julian esquentadinho! Ele combinaria bem com as caldeiras, não acha?
— Sério? Com certeza ele explodiria a nave toda no primeiro surto!
Dois sujeitos com toalhas amarradas na cintura passaram rindo, deixando um rastro de água espumada bem no local que havia acabado de limpar. Um choque perpassou por minha boca quando espremi os dentes.
— Um Executor com roupas de faxineiro! Acho que o Mestre deveria dispensar de vez ele da função — uma das cientistas mais velhas comentou.
— Né? Imagina! É embaraçoso para todos nós... Ainda pior do que o Provedor dele — respondeu outra, torcendo a toalha no cabelo molhado.
Por sorte desses filhos da puta, eu segurava um cabo de plástico que não podia fazer tanto estrago quanto as minhas lâminas.
Sei lá quantos minutos foram, mas muitos deles passaram durante a troca de grupos para a próxima sessão de banho. Quando o fluxo de idiotas terminou, podia ver meu rosto brilhar de vermelho no metal da parede. Meu braço ansiava por bater com aquele maldito esfregão em qualquer lugar. Mas eu tinha noção de que exatas três câmeras vigiavam aquele ponto do corredor. Ah, e o Mestre iria gostar da minha explosão. Não ia dar esse gostinho a ele.
Depois de um tempo, cedi. Joguei o balde junto do esfregão para o lado e caí sentado na extensão do corredor. Não limpei o chão o suficiente e pouco me importava. Era normal os espaços estarem sujos a cada segundo onde existisse um humano. Um maldito hábito terrestre tragado para fora do planeta.
Avistei com os olhos caídos alguns meteoritos flutuantes no mar vasto da escuridão do universo. Muitos achariam a vista incrível, fenomenal ou qualquer coisa além da realidade mundana. E sim, toda a tripulação que passara por mim, levando consigo suas toalhas de banho e sabonetes, deixava escapar suspiros ou perdia tempo encostados à camada de vidro.
Aquela vista sem um limiar, levada a um mar escuro e infinito, apenas me causava uma profunda sensação de aperto e terror. Depois de todos aqueles meses, eu havia me tornado um mero ser insignificante, como se eu mesmo fosse um miserável Provedor, o que era meia-verdade: meu único trabalho (o principal, aliás) era induzir dor num corpo e arrancar a preciosa substância. O processo dependia ativamente de mim.
É o que todos somos. Fazemos parte do processo.
Me levantei cambaleante e andei até o meu dormitório, pelos caminhos mais desabitados possíveis — no caso, a ponte de tubulações e de fiação elétrica. Havia por ali uma pessoa, um dos mecânicos, no final da passagem. Me viu uma única vez, o rosto endurecido que havia travado o meu corpo. Então ele continuou pela trilha, passando por mim como se eu nunca tivesse estado ali.
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Escala de Dor
Ciencia Ficción"Poucas estrelas brilham para a gente, companheiro. Ainda assim, o céu é um mar de luzinhas estáticas. Você quer ser uma daquelas que logo se apagam?" Entre os milhares de Executores de um tenebroso procedimento espacial, existe uma figura à beira d...