Parte III - E, por fim, a aceitação

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A sala escura e fria estava desconfortável até aquele momento, mas foi o nascer do sol entrando pelas janelas pequenas, de vidro quebrado, que mais feriu seus olhos. Pernoitar na penumbra completa faria qualquer pessoa reagir exatamente como ela, que tentou se esconder embaixo da sombra escassa da parede, afinal, não havia nada naquele cômodo que pudesse lhe ajudar.

Enquanto os olhos tentavam se acostumar com a luz, ela tentou mover as mãos e fracassou. Tomou um susto ao reparar que possuía os pulsos amarrados um ao outro enquanto um de seus tornozelos estava preso a uma corda, cuja ponta oposta fora enrolada no pequeno aquecedor de metal destruído. Foi então que, aos poucos, seu cérebro recordou as coisas às quais a noite de sono mal dormida queria apagar de sua memória.

O aparecimento repentino durante a noite anterior àquela no cativeiro; o olhar frio e calculista, cheio de ódio e promessas falsas; o pedido de desculpas vazio. Ele disse que não queria estar ali, mas que tudo isso era exclusivamente culpa dela. Se ela tivesse sido uma boa garota e morrido criança, nada daquilo teria que acontecer.

A pior parte, no entanto, foi ouvir que ele pretendia ir atrás de Hanabi.

— Preciso terminar aquilo que comecei anos atrás.

Pensar que ele já pudesse ter deixado aquela casa – e o cheiro de mofo unido ao de queimado eram mais do que suficientes para comprovar onde estava – fez com que ela se desesperasse. A jovem começou a se debater. Puxava com tanta força a corda presa ao pé que, em algum momento, arrancou o aquecedor velho da parede, curvando-o para frente, e cortou a pele fina. O ferimento poderia ter sido feito por uma faca, de tão discreto, mas não a parou.

Ela continuou a se debater. O corpo todo, principalmente os braços, ao também tentar desamarrar as mãos. Sua respiração ofegante preencheu o cômodo e, quando pensou que estivesse prestes a conseguir o que queria, a voz masculina acabou com suas poucas esperanças.

— O que pensa que está fazendo, vadiazinha?

Ela recuou quando sentiu as mãos calosas segurarem seu cabelo, puxando-a com tanta violência para cima que pensou que perderia facilmente um chumaço gigante dos fios azulados. Os olhos acinzentados encheram-se de lágrimas, pois a dor foi como uma corrente elétrica que desceu por seu corpo. Ela queria chorar, queria tanto... Todavia, algo dentro de si a impediu. Se alguém era capaz de tamanha atrocidade, ela seria capaz de aguentar também.

— Você não vai me responder, não é? — Ódio escorria pelas palavras venenosas dele. — É igualzinha àquela desgraçada de sua mãe. Sabe o que eu fiz com ela?

A jovem tentou lançar um olhar ameaçador para ele, mesmo que seu tornozelo sangrasse, que as mãos ardessem demais e os fios de cabelo estivessem perto de serem arrancados. Sabia que deveria se comportar como uma boa cativa – ou era isso que todos diziam – mas também sabia que não tinha chance alguma.

O primeiro tapa ardeu muito, o segundo, nem tanto. Ele continuou dizendo coisas absurdas sobre como a mãe dela se comportava, como ela tivera a coragem de querer acabar com ele – ele! – e como não podia permitir que isso acontecesse. A jovem recebeu o primeiro soco, que acertou o canto da boca, com uma surpresa incompreensível. Será que seu corpo ainda não entendera estar a ponto de apanhar até a morte?

— Ela mereceu tudo que eu fiz! E ninguém nunca foi capaz de encontrá-la. — A garota conhecia muito bem aquele detalhe. — Vou fazer a mesma coisa com você. Separar você em vários pedaços e espalhar pelo país. Não era isso que queria enquanto crescia? Viajar?

O sorriso deturpado que surgiu no rosto masculino provou para ela que a única chance que tinha era fugir. Ou escapava ou tudo acabaria ali. Não que se sentisse em condições de simplesmente sair correndo ou que tivesse um plano, mas faltavam-lhe escolhas. Muitas. Seu cérebro despertou quando sentiu o sabor do ferro na boca depois do segundo soco – o véu de choque que ainda a atrapalhava sumiu em um piscar de olhos e a única coisa que pôde fazer foi jogar a cabeça para frente, com força.

Através das PortasOnde histórias criam vida. Descubra agora